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Gastura

Antunes, a contragosto, reconhecia outros autores como mais talentosos que ele

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

O escritor argentino Jorge Luis Borges, autor do conto Funes el memorioso, provavelmente não conheceu Antunes, ou poderia ter escrito Antunes el gasturioso. Não conheceu, não escreveu, escrevo eu, aportuguesando, Antunes, o gasturioso.

Antunes era funcionário público e escritor. Dizia-se romancista, mas o Retrato sem Retoques de sua Época estava encruado fazia tempinho. Em compensação, seus contos escorriam fácil, que nem cocô em bebê novo. Mas ele sabia que, com as raras e honrosas exceções de praxe, conto não dá camisa a ninguém. Romance, claro que sim; mas o seu estava emperrado. O que aumentava sua gastura em relação a seus confrades/seus rivais, mais felizes – ou protegidos pela máfia dos editores, dizia sempre a si mesmo, com um rosnado.

A gastura de Antunes manifestava-se ao longo de toda a pirâmide literária. No topo da cadeia alimentar estavam romancistas, contistas e poetas que reconhecia, com mal-estar e contragosto, serem mais talentosos que ele. Gente do calibre de Cervantes, Shakespeare, Tolstoi, o Machado de Assis pós-Memórias póstumas de Brás Cubas, Guimarães Rosa, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, Drummond, Bandeira. Não conhecia os novos, não ia gastar seu parco dinheirinho, seu mísero salário de servidor, com autores que escreviam, quando muito, tão bem quanto ele. A rigor, em relação aos medalhões, não se tratava propriamente de gastura, e sim de inveja pura e simples.

Se estava ausente do alto rarefeito da pirâmide, a gastura manifestava-se, com força, mesclada ao ressentimento, nos estratos subsequentes. Em relação à máfia dos editores, que recusavam publicar seus contos e não lhe concediam um adiantamento para terminar seu romance (pedira, implorara a todas elas, e só recebera recusas). Em relação aos organizadores de concursos literários, que nunca o premiavam, bando de imbecis que não reconheciam seu talento; e, acima de tudo, em relação à tigrada das camadas da base. Ficava indignado quando um deles era publicado, e exclamava, com o vocabulário antigo que caracterizava sua fala (mas não seus textos, fingir modernidade para ser publicado era preciso):

– Despautério! Como um sacripanta desses é publicado, e eu não?

Até que um dia choveu na sua horta: três contos, que enviara para diferentes concursos literários, receberam um terceiro lugar, um segundo lugar e o tão sonhado primeiro lugar. Era a glória! Infelizmente os prêmios eram simbólicos, não vinham com quantias em dinheiro, mas sua gastura em relação aos organizadores de concursos literários foi diminuindo como por encanto.

Houve mais. Diante da notoriedade novinha em folha de Antunes, uma editora para a qual havia encaminhado um livro de contos decidiu publicá-lo. Ele quase se mijou de emoção: ia trocar as fileiras da tigrada dos Inéditos para tornar-se um Autor! O livro foi mal divulgado, vendeu pouco, mas não importava. Era a glória ou, para ser mais preciso, era o Antunes com um banho de loja, artefinalizado.

Resultado, sua velha e má gastura deslizou dos estratos superiores da movida literária para a base, transformando-se no processo. Editores e organizadores de concursos passaram a ser respeitados, vistos (quase) de igual para igual. Em contrapartida, os textos dos iniciantes, grupo a que ele pertencia havia bem pouco tempo, passaram a provocar-lhe não gastura ou mal-estar, ou seus aparentados fastio e tédio, e sim um misto de condescendência, escárnio e zombaria. Um sentimento feio e mau, que os alemães descrevem com a palavra Schadenfreude, alegria maligna, prazer com o infortúnio do outro.

“Pobres imbecis”, pensava sempre. “Julgam-se literatos, e mal conseguem criar poemas em que rimam amor e flor, ou crônicas chinfrins em que louvam o Pai Eterno, a Natureza, o Amor, tudo em maiúsculas…Eles tinham mais é que pendurar as chuteiras, não disputar espaço com quem tem talento”.

Não concluiu com as palavras “que nem eu”. Não era preciso. E assim Antunes, o gasturioso, deixou de existir. Em seu lugar surgiu Antunes, o presunçoso. O que, como ensinou um de seus ídolos, Drummond de Andrade, no Poema das sete faces, seria uma rima, não seria uma solução. Parafraseando outra divindade do seu Olimpo literário pessoal, Guimarães Rosa: “Pobre Antunes! Pobre diabo bemtrapilho!”

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