Picles na mesa
Sabores da memória da infância vão de muitos momentos doces a alguns azedos
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Eu imagino que a infância de cada pessoa tem um sabor específico. Um gosto que fica impregnado na memória, nos gestos e até nos sonhos. A minha infância tem vários. Alguns doces, outros nem tanto, mas todos muito vivos.
Um dos mais marcantes é o sabor do cuscuz de milho com um pouquinho de manteiga e café preto. Só de pensar, já sinto o cheiro invadindo a cozinha e minha mãe dizendo que o café estava pronto. Era o cardápio das manhãs, invariavelmente. Aquele prato quente, simples, amarelinho, era quase um ritual. Confesso que, na época, eu não achava assim tão mágico. Meu coração infantil sonhava com um pão francês quentinho, um biscoito recheado, qualquer coisa que quebrasse a rotina. Mas era o que tinha e, hoje, ironicamente, é o que me traz mais perto daquele tempo.
Por outro lado, há sabores que me remetem a uma felicidade quase cinematográfica. O picles, por exemplo. Aqueles vegetais em conserva que meu pai eventualmente comprava. E quando comprava, era uma festa. Ele abria o vidro com todo cuidado e distribuía um para mim, um para cada irmão. Aquilo, para nós, era sinônimo de fartura. Era como se, por alguns instantes, fôssemos a família mais rica do mundo. Cada mordida tinha gosto de privilégio, de surpresa, de coisa rara. Era o ápice da alegria infantil, aquela alegria desproporcional e genuína que a vida adulta quase nunca consegue reproduzir.
Hoje, de vez em quando, compro um vidro de picles. Não porque eu ame o sabor (embora eu goste), mas na esperança de reviver aquele instante, aquela emoção quase esquecida. Coloco o picles no prato e espero, silenciosamente, que meu pai apareça do lado com seu jeito calmo, dividindo pequenos pedaços de alegria entre os filhos. Às vezes dá certo. Outras vezes, fico só com o vinagre nos olhos.
É curioso como o paladar guarda lembranças. Mais do que isso, ele as conserva, como num vidro com tampa bem fechada. E a gente, de vez em quando, vai lá e abre, só pra sentir de novo aquele tempo em que tudo era mais simples, mais intenso, mais nosso.