Resta a esperança
Há três noites que pro Norte relampeia, mas o trovão ribomba e silencia
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Lá onde o agreste se debruça sobre o sertão, costurando as franjas da Bahia, de Pernambuco e do Ceará, a terra é mais poeira do que chão. Um chão que estala sob os pés como se tivesse sede de passos, sede de gente. E há gente. Sempre há. Porque o sertanejo, esse que resiste com o lombo curvado e o olhar de aço, não foge da terra: finca-se nela como raiz de mandacaru.
Do alto de um lajedo, o velho Zé Branquinho limpava o suor com o mesmo lenço encardido que herdara do pai. Ao seu lado, o menino Dico, neto curioso de alma inquieta, fitava o horizonte seco.
— Vô, dizem que o sertão vai virar mar. É verdade?
Zé soltou uma risada curta, amarga como café dormido.
— Menino, isso é coisa de cantador, de poeta com a vista embaçada de saudade. O sertão num vai virar mar, não. Aqui só vira é poeira.
— Mas Patativa disse…
— Disse, sim. E disse bonito. “A triste partida” é verso de dor, não de profecia. Aqui, meu neto, o que tem é mais partida que chegada.
Dico apertou os olhos. O céu era uma lona de zinco, sem uma nuvem de compaixão. O gado cambaleava ao longe, a fome roendo os ossos como cupim em cerca velha.
E de repente, como se cantasse pra si, Zé murmurou:
“Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato…”
— Gonzaga já sabia — completou ele — que o lamento sertanejo é feito de silêncio. É um choro que se engole pra não gastar água.
Dico, sem entender muito, puxou o estilingue do bolso e mirou uma sombra na árvore.
— E por que o povo não vai embora, vô?
Zé pigarreou, engolindo a emoção como quem engole o próprio destino:
— Porque a alma da gente tá costurada com espinho de xiquexique. O sertanejo, Dico, é feito de coragem. Como escreveu um doutor das letras: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte.”
— Forte como o quê?
— Como a terra rachada, que mesmo ferida, insiste em parir feijão de corda. Como a mãe que cozinha pedra pra enganar a fome dos menino. Forte como nós, que rimos sem ter motivo só pra não chorar.
O sol caiu de lado, acendendo brasas no céu. Não havia sinal de chuva. Nem relâmpago, nem trovoada. Só a certeza de que amanhã seria igual. Ou pior.
Mas Zé Branquinho puxou o chapéu, firmou os olhos no horizonte e disse, quase num sussurro:
— Um dia, Dico, um dia talvez o mar é que vire sertão. E a gente vai tá aqui, do mesmo jeito, plantando esperança no chão seco.
Ali onde vive Zé Branquinho, homem talhado pelo tempo e pelo sol, com a pele curtida como couro de gibão. Seu neto, Dico, menino curioso e franzino, era o seu eco inquieto.
Sentados à sombra murcha de um juazeiro, miravam juntos o horizonte duro.
— Vô, se o sertão num vai virar mar, o que vai virar?
Zé pensou. Coçou o queixo espinhento. Depois respondeu, com voz de trovão abafado:
— Vai virar resistência, menino. Vai virar poema. Vai virar canto preso na garganta.
Dico engoliu a poeira com um gole de água quente da cabaça. O céu, esse grande palco do improvável, seguia claro demais.
— Mas, vô, já faz três noites que pro norte relampeia — disse o menino, esperançoso, cantarolando um sucesso de Luiz Gonzaga — “…e a Asa Branca, ouvindo o ronco do trovão, já bateu asas e voltou pro meu sertão…”
Zé fechou os olhos, saboreando o verso como se fosse rapadura. A música de Gonzagão ainda morava em seus ouvidos como canto de sabiá em tempos de chuva. Mas ele sabia que, às vezes, o trovão é só barulho, e a Asa Branca, coitada, se engana no caminho.
— A Asa pode ter voltado, Dico… mas a chuva ainda tá perdida nos confins do céu. E mesmo que ela venha, nem sempre traz alegria. Às vezes, traz é lama e correnteza que leva roçado e esperança junto.
— Mas o senhor acredita?
— Acredito. Sertanejo acredita até em terra rachada. Porque se não acreditar, morre de sede por dentro.
Um silêncio caiu entre os dois, denso como o ar parado.
Ao longe, uma velha caminhava, envolta num xale remendado, carregando um feixe de lenha maior que ela. Era Dona Ernestina, rezadeira de beira de estrada.
— Boa tarde, Zé! — gritou ela, com voz rouca de cigarro e ladainha. — Soube que o gado de João Neto tombou. Tudo seco. Nem leite, nem carne. Só o couro e o olhar vazio.
Zé assentiu com a cabeça. Já ouvira falar.
— O sertão tá mais triste que “A Triste Partida”, Ernestina. Só falta o povo embarcar no trem pra São Paulo de novo…
Ela deu um sorriso torto:
— Mas ninguém vai, Zé. Aqui é onde se nasce e se teima. Como Patativa disse: “o meu verso é como um ponteiro, cravado no coração.” A gente sangra, mas canta.
E se foi, sumindo como sombra na paisagem.
Zé puxou o neto pro colo e disse:
— Dico, o sertão é feito de promessa. Às vezes cumpre, às vezes mente. Mas o que não falta aqui é alma. E coragem.
— E se um dia o mar vier mesmo, vô?
— A gente aprende a nadar com a fé. Ou então planta jangada em meio aos espinhos. Porque aqui, menino, até o impossível a gente encara de cabeça erguida.
O sol começava a cair, tingindo de ouro e ferrugem a vastidão calada. No céu, um único ponto escuro: uma ave, talvez a Asa Branca, riscando o ar como esperança.
E o velho Zé Branquinho, com os olhos rasos d’água — não de chuva, mas de lembrança — sussurrou como se orasse:
— O sertão não vai virar mar, Dico. Vai virar eternidade.
Naquela mesma tarde, o sino da capela bateu três vezes. Não era dia de missa nem de defunto. Era aviso de reunião. No sertão, quando o sino dobra fora de hora, até o vento presta atenção.
— Tá secando o poço de Dona Ernestina — murmurou um vaqueiro que passava, chapéu baixo, voz soterrada. — É o último da região.
Zé Branquinho ouviu calado. Seus olhos, que já tinham visto enchente carregar menino e seca matar cabra de fome, se apertaram como se buscassem um caminho no meio do nada.
Na clareira em frente à capela, o povo começou a se ajuntar. Chegaram a pé, de jegue, de bicicleta. Vinham das veredas, dos grotões, de onde ainda se criava galinha com milho de reza.
— É agora ou nunca — gritou Severina das Abelhas, mulher miúda, mas com peito de sanfoneiro. — Se a gente não cavar outro poço, vamos ter que abandonar a terra.
— E cavar com quê, mulher? — resmungou Tonho Gadelha, o mais desconfiado da vila. — Com as unhas?
Severina bateu o pé:
— Com a fé. Com a teimosia. Com o braço que ainda mexe. Ou vocês acham que o sertão vai nos levar sem briga?
Dona Ernestina chegou por último, amparada por Dico, que a ajudava a carregar um pequeno tambor d’água — talvez o último da casa. Ela levantou o olhar pro céu e falou:
— O céu anda mudo, é verdade. Mas a terra escuta. Se a gente cavar onde o coração manda, a água aparece.
Zé Branquinho, que até então se mantinha calado, pigarreou. O povo fez silêncio.
— Quando eu era novo, me disseram que no fundo da terra mora um rio escondido. Um rio que corre por debaixo da seca, feito promessa esquecida. Quem cavar com esperança, um dia encontra.
O povo assentiu com a cabeça. No sertão, qualquer rastro de fé vira mapa.
Naquela mesma noite, homens e mulheres, velhos e crianças, começaram a cavar. Não com tratores — que não havia —, mas com enxadas, pás, latas, panelas e mãos.
Zé Branquinho olhava para Dico, que sujava os pés de terra vermelha com orgulho. E pensava: “Talvez ele nunca vá pra São Paulo. Talvez, só talvez, o sertão ainda seja chão pra quem sonha com raiz.”
Dias se passaram. As mãos calejaram. A esperança ameaçou murchar. Mas ninguém desistia.
Até que, certa manhã, um grito rasgou o silêncio:
— Água!
Veio fina, tímida, molhando mais o rosto do que a terra. Mas era água. Límpida, fria. Salgada de alegria.
O povo dançou. Chorou. Cantou Gonzaga aos berros:
“Voltei pro meu sertão, Já faz três noites que pro norte relampeia…”
A Asa Branca não era miragem.
Zé Branquinho abraçou Dico. Seus olhos, pela primeira vez em muito tempo, pareciam ter chuva por dentro.
— Viu, menino? O sertão não virou mar. Mas também não virou deserto. Ele virou milagre de quem não arreda pé.
E naquele sertão de barro e batalha, a vida recomeçou, como sempre recomeça. Silenciosa, teimosa. E, sobretudo, forte.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras