As meninas da floresta
Meninas que brincam na névoa de uma floresta coberta de silêncio
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Era uma quarta-feira qualquer, na cidade do Rio de Janeiro. Eu trabalhava numa empresa de tecnologia que prestava serviços para o governo. Haviam descoberto relações pouco republicanas do diretor-presidente com políticos locais. O caso estava sendo noticiado pela imprensa: licitações compradas, pagamento de propina, lavagem de dinheiro com notas fiscais fornecidas pela contabilidade da empresa… As fraudes chegavam a vinte milhões de reais. O caos estava instaurado e começavam a falar em cortes e devassas.
Eu nada tinha a ver com os malfeitos, trabalhava no setor de tecnologia e sempre fora um empregado exemplar. Acabara de ser pai, minha esposa ainda se encontrava de licença-maternidade, e entráramos num financiamento bancário para a compra de nosso primeiro apartamento. Eu fiquei em pânico com a perspectiva de perder o emprego. Saí para almoçar na hora habitual e não pude voltar à minha sala – a polícia federal estava cumprindo mandados de busca e apreensão na sede da empresa e ninguém mais entrava. Os que estavam dentro, foram liberados imediatamente.
Não sabia como a notícia iria repercutir em casa e pensava em como contar para minha mulher. Peguei o carro e, desolado, fui dirigindo em direção à minha casa, mas, próximo ao Viaduto dos Marinheiros, entrei em direção à Tijuca e subi até à Pracinha do Alto, quase que mecanicamente e, até hoje sem entender exatamente o porquê, fui parar no lugar denominado Bom Retiro, dentro da Floresta da Tijuca. Para quem não está familiarizado com esse recanto do Rio, trata-se de um pequeno largo, cercado de florestas, do qual sai uma trilha que leva ao Pico da Tijuca, ponto mais elevado do parque. Há também um obelisco e um pequeno pavilhão.
Ia chegando perto, até o ponto em que se estaciona, e reparei que, em meio à solidão da floresta, eu não estava só. Um grupo de meninas, vestidas do que me pareceu um uniforme escolar muito antiquado, brincavam por ali, cantando em roda, de mãos dadas, uma antiquíssima cantiga.
Fiquei alguns minutos olhando aquelas meninas, absorto e muito distante dos meus pensamentos de pouco antes, e fui observando que seus uniformes estavam gastos e seus pés, descalços, encontravam-se bem sujos. Olhei em volta e não encontrei nenhum veículo escolar no qual aquelas meninas pudessem haver chegado até ali. Fiquei surpreso em pensar como poderiam haver subido, até tão distante da entrada do parque, a pé e descalças.
De repente, todas pararam a brincadeira e voltaram-se para mim, me encarando. Foi quando, atrás de mim, notei a figura de uma mulher alta, magra, vestida de forma tão anacrônica quanto as meninas, com um vestido comprido e de um cinza estranho, desagradável, apesar de sua expressão de bondade. Seus cabelos louros, presos a um coque, encontravam-se em certo desalinho e seus olhos, muito claros, pareciam tristes, ou extremamente exaustos. Dirigindo-se a mim, ela me perguntou:
– O senhor estava apreciando o canto de nossas meninas?
A forma gélida com que ela falou me arrepiou dos pés à cabeça. Eu respondi:
– Não, estava apenas olhando o movimento. Acho que não estou me sentindo bem, estou tendo um dia muito difícil…
– Elas também – respondeu-me a mulher – por isso trouxe-as até aqui. Para se distraírem um pouco enquanto se desligam das coisas lá em baixo. Esta floresta tem uma energia muito boa. Elas vivem numa situação complicada, estão afastadas de suas famílias, passando por uma certa… perturbação.
Achei curiosa a forma como a mulher foi reticente no fim de sua frase. Pensei que, embora eu mesmo estivesse numa situação difícil, as meninas experimentavam quadro pior. Senti uma compaixão inexplicável por elas e perguntei à acompanhante:
– A senhora é professora?
– De certa forma, sim. Fui designada para estar com elas hoje. Ensino e aprendo muito trabalhando assim.
Aquelas meninas e o ambiente que criavam me deixava estranhamente fascinado. Minha cabeça, agora esquecida dos acontecimentos da manhã, começava a latejar e escutava como um zumbido em meus ouvidos. Tive o ímpeto de perguntar se podia fazer algo e onde elas moravam.
– No momento creio que não haja o que o senhor possa fazer, e agradecemos muito. Elas já não precisam de nada material. Mas o senhor pode ajudá-las muitíssimo com uma coisa simples de fazer: oração. Uma oração sincera, vinda do fundo da alma.
Eu não acreditava muito em Deus, nem atribuía efeitos práticos a orações. A fé era-me quase uma desconhecida. Por isso insisti:
– Mas faço questão de prestar algum auxílio. O que for preciso. Onde posso encontrá-las?
– Hoje em dia elas permanecem no Educandário Santa Eufêmia… É um lugar antigo, quase esquecido, mas onde ainda resta um pouco de silêncio. Silêncio, às vezes, é tudo que uma alma ferida precisa para continuar.
Com essa informação, eu me dei por satisfeito e, após alguns minutos mais contemplando a cena, como as meninas haviam voltado para suas brincadeiras, agora dispersas em grupos menores, despedi-me da mulher e voltei para o meu carro, indo embora para casa.
Minha mente retornou aos problemas anteriores e, quando cheguei, nosso pequeno bebê dormia tranquilamente, enquanto minha esposa, ao lado do bercinho, arrumava algumas roupas recém lavadas para guardar.
Cumprimentei-a com um beijo carinhoso e ela me perguntou:
– Tudo bem hoje?
Ao que respondi:
– Sim! Tudo bem. Enquanto estivermos juntos, nos amando, tudo estará bem. Sempre muito bem.
Nos dias próximos, a poeira baixou, o caso na empresa foi momentaneamente resolvido com a troca de toda a diretoria, para a qual vieram executivos estrangeiros, e demissões em vários setores foram efetivadas, todas relacionadas aos envolvidos com as falcatruas descobertas. Eu permaneci onde estava, até que, semanas depois, fui chamado para uma reunião na diretoria. Fui apavorado, mas, lá chegando, me convidaram para assumir um cargo de diretoria, com significativo aumento de salário. Tudo ficara bem e ainda melhor.
Mas não esquecera daquela tarde em que vira as meninas na floresta e passei semanas em busca de referências sobre o Educandário Santa Eufêmia, sobre o qual nada achava, até que, pesquisando na internet, descobri menções a ele, que funcionara até os anos de 1950, num velho casarão do bairro do Cosme Velho.
Como já havia comprado lençóis, travesseiros, material de higiene e brinquedos para doar, resolvi ir até lá num sábado de manhã, contrariando a possibilidade do local estar desativado.
Encontrei a rua do endereço, sem saída, com uma guarita na esquina, dessas de vigilância privada.
Mas, como não identificara o prédio da escola, perguntei ao vigia da guarita se conhecia algum educandário nas imediações. Ele me olhou por um instante, surpreso:
– Educandário? Já teve um sim, faz muito tempo… Ali no fim da rua. Um casarão antigo. Dizem que, nos últimos tempos, só restavam umas poucas meninas e uma preceptora. Depois, nunca mais ouvi falar. Tem gente que jura que, de vez em quando, escuta cantigas vindo lá da mata. Mas deve ser só o vento. Ou saudade. Saudade demais…
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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).