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Pensamento lógico

O Livro que Samara não lerá

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Acordei às onze da manhã, ainda com os olhos ardendo. Acendi um cigarro antes de lembrar que dia era. Tinha uma sensação de deslocamento, de que o movimento das ruas fazia um peso insuportável sobre o meu peito. O que havia acontecido?

Nada demais, era apenas algo que eu experimentava com frequência. A impressão de que não me lembrava como tinha ido parar ali, o que havia feito horas antes de dormir. Havia conseguido pregar os olhos quando o dia ainda estava vencendo discretamente a madrugada. Deixei a janela próxima da cama aberta de propósito, pela qual entrava um vento gelado e, quando o barulho vulgar do mundo dava trégua, conseguia ouvir as ondas do mar, umas sobre as outras, beijando a areia num ato de amor infinito.

Samara foi meu primeiro pensamento lógico do dia. Nenhum dia começa sem que ela atravesse minha cabeça com a naturalidade de um anúncio de automóvel na televisão. A vontade de ligar ou mandar uma mensagem não passa, e eu prometi que vou resistir, manter a dignidade. Ela já me rejeitou tantas vezes… Estou cansado.

Ontem à noite eu vim para casa, depois de passar algumas horas com amigos num bar. Eu bebi, chorei e prometi mudar de vida. Mudar de vida… o que significa isso?

Depois que cheguei, lembro-me de haver ligado o computador, aberto uma garrafa e me propus a escrever. Escrever, escrever, aliviar tudo que estava dentro do meu peito. Soltar os cachorros.

A salvação só pode estar na escrita. Escrever um romance. Um dos grandes! Criar um universo paralelo, onde controlo todos os acontecimentos e as personagens vivem e morrem sob meus comandos. Criar heróis, pais e mães amorosos que sentem orgulho de seu filho, um menino que aprende a tocar piano e, aos 14 anos, dá recitais no exterior, ou vence a competição de vôlei aos 16, entre na faculdade de primeira e, talvez aos 28, se case com a mulher que ame. Heloísa… Mas o caminho de Heloísa se distanciou do meu e, quando eu jugava tê-la superado, conheci Samara.

No meu livro, o amor de Samara pode ser sincero, e ela não me troca por outro. Ela anseia me beijar todas as noites, acredita em meu talento, ri das minhas piadas, vai para casa comigo e dormimos agarradinhos.

A realidade é diferente. Na fantasia, Samara não é cruel, feita de feitiços e campo minado. Na vida real, são muitas exigências. Ela me quer só para ela, tem ciúmes dos meus amigos, briga, se destempera e diz coisas horríveis. Abusou da bebida quando fomos num show intimista de ‘stand up’, e, falando alto, interrompeu o comediante. Eu não sabia onde enfiar a cara de vergonha. Com um gesto largo, derrubou vinho na mesa, que partilhávamos com duas meninas desconhecidas. Foi o caos.

Naquela noite, levei-a em casa e tivemos uma conversa séria. Disse que a deixaria se continuasse assim. Ela chorou, pediu desculpas, e depois mudou de ideia e mandou-me ir embora e não voltar nunca mais.

Foi isso que eu fiz, cheio de orgulho e decisão. Quando cheguei na esquina, ela me ligou, pedindo que voltasse, que não éramos crianças e podíamos nos entender muito bem. Fiquei ali parado meia hora, pensando, enquanto ia servindo de banquete a mosquitos que ainda nem foram batizados pela ciência. Mas eu estava convicto de que era um ponto final. Cansara de viver em sobressalto. Andei um pouco mais até o carro e fui embora.

Não foi ponto final, mas ponto e vírgula. E, entre idas e vindas, passaram-se alguns meses, até que eu desisti de vez. Ou pensei que havia desistido. O resto da história eu não quero lembrar. Envolve a sensação estranha e o amargo na boca que senti quando vi que ela postou uma foto na rede social com outro cara e concluí que ciúme é só um nome bonito para um soco no estômago. Como é duro saber que tem outro, a uma hora dessas, que pode sentir o perfume do pescoço de Samara…

Samara não merece entrar no meu livro. Nem disfarçada. Vou escrever outra história, sem ela. Algo inédito, cheio de palavras inventadas para sentimentos que ainda não entendi. Talvez essa seja uma velha fórmula vestida de novidade. Não sei… Preciso voltar à escrita. Tenho conteúdo, estou convicto. Será um divisor de águas na literatura.

A cabeça está doendo. A garrafa que abri era, certamente, de uísque barato. Havia ainda um restinho no fundo. Não, não tenho coragem de cometer esse ato solerte a uma hora dessas.

Tomar decisões são minha especialidade. Procrastinar também.

Agora, no entanto, será para valer. É terminar o livro e voltar a conversar com aquele rapaz tão simpático da editora. Eu sei que vai dar liga. Tem que dar. É o meu momento.

Escritor consagrado aparece na internet, é convidado para programas de TV, dá entrevista em podcast, ganha prêmios, tem cobertura na mídia.

Tenho certeza que, numa dessas, Samara topa com o meu perfil, visualiza meu story, ou então me ouve falando em algum lugar, e vai pensar bem em ler minha mensagem da próxima vez que eu escrever.

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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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