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Tangueros

Fendas destinadas a exibir pernas ainda atraentes

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Jorge e Isabel eram tangueros. Vestiam roupas simples – ele, um terno escuro fora de moda, complementado por um chapéu mais que obsoleto; ela, um vestido azul com fendas destinadas a exibir-lhe as pernas ainda atraentes –, colocavam um aparelho de som na rua, junto a uma bandeira argentina, uma vasilha para receber as contribuições dos apreciadores (esmolas de quem passava seria uma descrição mais precisa, porém demasiado rude). E tangueavam.

Ele movia-se com passos curtos, o corpo levemente encurvado. Ela o acompanhava com habilidade, mas sem brio. Era a dança triste de um casal maduro, quase idoso, sem a arrogância sedutora de tangueras e tangueros na flor da idade. Um tango de gente pobre, obrigada a exibir sua única habilidade nas ruas para sobreviver.

E bem ou mal conseguiam. O incentivo (esmola?) dos aficionados pingava constantemente na vasilha, passantes deixavam-se contagiar pelo exemplo dos dançarinos e ensaiavam passos solitários, os dois recebiam aplausos, dava para ter uma vida humilde mas com um mínimo de dignidade. Só que, Isabel e Jorge o descobriram amargamente, tango e calor tropical não combinam.

Aconteceu de um compatriota, autoproclamado empresário no setor de entretenimento, os convencer a realizar uma turnê pelos cabarés do Rio de Janeiro. Receberam o dinheiro para duas passagens de ônibus Buenos Aires – Rio, o resto seria pago depois de chegarem. Só que o empresário sumiu, ou foi à falência, tanto faz, e o sonho de um tour glorioso se desfez. Para piorar as coisas, foram assaltados, ficaram sem um tostão.

Por sorte, haviam trazido o aparelho de som, que ficara na pensão barata em que estavam hospedados. Retomaram então as exibições na rua, como faziam em Buenos Aires, na Calle Florida. A Cinelândia – não Copacabana, muito menos Ipanema – seria o palco.

Foi um fracasso total. A moçada do samba e do funk não entendia a letra, não entrava na vibe do tango, “tristeza que se baila”. Familiarizada com a peritagem vibrante e luminosa de passistas e mestres-salas, não captava a habilidade lancinante e sombria de Jorge, em seu terno puído.

Só que os deuses protegem tangueros envelhecidos. No caso de Isabel e Jorge, os anjos da guarda foram velhos boêmios cariocas, frequentadores aposentados de cabarés que não existiam mais, testemunhas de um tempo para sempre perdido, em que o tango dominava as noites do Rio e incorporava à gíria do Brasil palavras como mina, cafifa e/ou cafiolo, grana, otário e bacana. Comovidos, saudosos não de exibições de tango, mas de sua própria juventude, eles fizeram uma vaquinha e conseguiram devolver o casal a sua bem-amada Calle Florida, onde se apresentarão pelos séculos dos séculos, amém.

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