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Modismo da antropofagia

Brasil da mediocridade, todo dia é 1º de abril

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Autor/Imagem:
Armando Cardoso - Foto de Arquivo

Assim como a primeira cueca samba canção e o primeiro sutiã, algumas frases e histórias a gente nunca esquece. Célebre autor moçambicano, Mia Couto escreveu para eu jamais esquecer que “A saudade é uma tatuagem na alma. Só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós”. O tempo passou de repente. Envelheci, mas como esquecer o corpete colorido das meninas untadas de laquê no cabelo e Chanel no. 5 no cangote. Isso pode ser coisa do passado. Não para mim que, embalsamado no Lancaster e vestido com uma camisa volta ao mundo, me achava aos 17, 18 anos o rei da cocada preta sem lastro, sem coco e sem açúcar. Pelo menos vivi no tempo em que um homem documentando era só um sujeito cheio de documentos.

Ouvia falar dos homens com H e da Cibalena como estimulante sexual. Ainda não havia para mim o Novembro Azul, muito menos os urologistas, aos quais a gente confessa coisas que até Deus duvida. Sei que é exagero, mas valho-me da metáfora apenas para enfatizar a imprevisibilidade e a incerteza que permeiam a vida de um sujeito alfa ainda sem muitas convicções acerca dos caminhos que deveria percorrer. Era eu. Não sou mais! É aquela velha história de deixar o machado perder o corte somente para experimentar a novidade do fio terra. Desaprendi de viver. Relendo os alfarrábios musicais de minha fase virginal, lembrei dos velhos tempos e das velhas amizades cantadas por Renato Barros e seus Blue Caps.

Como diziam os Bacaninhas da Piedade, “ah que bom seria se voltassem os dias tão felizes que passei há 40 ou 50 anos atrás”. Em meu quarto, surfando nas ondas da Playboy, da Ele&Ela e da Status, eu via o mundo girar ouvindo os garotos de Liverpool a cantar. Quem não viu ou ouviu os Beatles Yesterday (ontem) jamais conhecerá Tomorrow (amanhã) o exato significado de Let it be. Resta a esses embarcar no Yellow submarine futurista de Elon Musk e tentar voltar do fundo do mar para novamente ouvir dos antigos que “a vida era tão boa para quem sabia sonhar”. Era festa todo dia. A ordem dada pelo poeta baiano parecia um mantra para a juventude assanhada e louca para dizer sim ao sim e não ao não.

Por isso, mesmo com os automóveis ardendo em chamas, era proibido proibir. Desorganizado e sob controle, o crime e o Parlamento não geravam manchetes tão ruins. O bem raramente perdia para o mal. Apesar de psicodélico e, às vezes, alto demais para os insensatos, o amor já foi azul. Hoje, nem o amor é mais o mesmo. Pura nostalgia ou o modismo patriótico da antropofagia. Acho que um pouco de cada. Playground não havia, mas tinha crianças nos quintais, namorados nas praças e nos jardins, flores naturais, paz, harmonia e muito respeito entre os que elegiam vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e presidentes da República sem medo de golpes.

Perder era somente o contrário de ganhar. Tudo mudou em pouco tempo. A exemplo de 1964, de 2022 a 2024 matar e morrer era apenas uma patética escolha política. Algo como a profundidade de um pires. À luz do dia, especialistas fardados e escorados em um falso e piegas patriotismo faziam promoção golpista nas redes sociais. Nos bate-papos virtuais, chegavam a negociar a morte por envenenamento de um presidente e de um vice-presidente. Consumada a empreitada, o autor ou autores ganharia ou ganhariam um ministro do Supremo Tribunal Federal de brinde.

Embora a sombra fosse dos mais espertos, o sol nascia literalmente para todos. A coragem e o carisma alheios só humilhavam os fracos de caráter, particularmente os que sonhavam em ser um vaga-lume, o inseto que voa com a luzinha no rabo. Tudo mudou, menos a forma encontrada pelos políticos de extrema-direita, de direita e alguns de esquerda para enganar o povo. Conforme a máxima de Millôr Fernandes, os primeiros acreditam cegamente em tudo que lhes ensinaram, enquanto os outros acreditam cegamente em tudo que ensinam. O resultado é que acabou o estoque de verdades de uns e de outros. No país do golpe fracassado resta apenas a mentira em série. Eis a razão pela qual no Brasil de hoje todo dia é primeiro de abril. Na verdade, estou cansado da mediocridade na política.

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Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras

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