Sonho
Murilo e Fernando
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Fernando escrevia contos. Uma amiga mineira, Clarice, gostava deles e sempre comentava que lembravam os de seu conterrâneo Murilo Rubião, expoente do realismo fantástico nas letras brasileiras. (Ele descobriu recentemente que Cecília Baumann, editora-assistente de Cultura no Notibras, compartilhava essa crença, e convenceu disso o Cassiano Condé, colunista de O lado B da literatura, também no Notibras) Fernando explicou à Clarice – e agora o faz aos outros dois – que não conhecia o atleta, nunca havia lido nada dele, nem sabia se já tinha morrido ou se continuava a saltitar pelas ruas de Belzonte; Clarice, tiete murilista (e, admitamos, também fernandista), informou que Rubião havia morrido fazia tempim, em 1991, e insistiu:
– Lê os contos dele, bobo. Cê vai ver que lembram muito os seus. Beijim – e despediu-se.
Fernando prometeu ler. E esqueceu o assunto.
Mas aquilo ficou remoendo em sua mente. A verdade era que ele não se considerava um literato, não cursara Letras, e sim Direito. Lera bastante, de maneira caótica, de Machado de Assis – a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, nada anterior – a Luis Fernando Verissimo, passando pelos cronistas, todos, Jorge Amado, Erico Verissimo, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa e alguns menos votados. Em resumo, estava no mínimo 25 anos defasado em termos de literatura brasileira. O que não o incomodava nem um pouco, não o impedia de escrever e postar seus textos.
Certo dia, sem ter nada o que fazer, digitou no google “Murilo Rubião”. Apareceram dados biográficos e vários contos, devidamente devorados. Na mesma noite, ligou para Clarice.
– Olha, mineirinha, acabei de ler contos do “seu” Murilo Rubião. Gostei da maioria. Temos em comum parágrafos iniciais instigantes, que tentam prender o leitor. Mas meus textos são mais curtos, conduzem mais rápido ao final, em muitos casos com uma reviravolta surpreendente. Nos dele, não vi muito essa preocupação. E certas soluções… francamente, eu jamais colocaria um dragão como amante de uma mulher; e devorar um bando de leões… não vejo isso como realismo fantástico, e sim como mau gosto!
Clarice ficou indignada, lembrou contos dele sobre monstros – “primos-irmãos de dragões, né, bobim?” – e prometeu apontar “murilices” nos textos, rsrs.
– Com certeza serão fernandices, kkk. Beijim, mineirinha.
Três dias depois, foi dormir cedo, não estava muito bem. Teve um sono intranquilo. Lá pelas tantas, acordou com alguém que o sacudia, enquanto dizia:
– Boa noite, contista.
Levantou-se, apavorado, e viu um homem moreno, de chapéu e bigode aparado, como se usava nos anos 1940. A aparição apresentou-se.
– Também sou contista. Ou fui, né? Rsrs. Murilo Rubião. Vim aqui porque uma leitora fiel de nós dois acha nossos estilos parecidos, e queria…
– Verificar se não é plágio de minha parte? – cortou Fernando, indignado. Por estranho que pareça, a raiva o fazia aceitar a presença fantasmagórica. Levantou-se da cama e falou:
– Olha, até o início da semana, nunca tinha lido uma só linha escrita por você.
A aparição olhou-o, em silêncio, e Fernando prosseguiu, mais calmo.
– Clarice, nossa leitora fiel, acha que também enveredo pelo realismo fantástico. Não sei se concordo, mas passemos. De fato, percebo ressonâncias entre os seus contos e os meus. Não influências, muito menos cópias: ressonâncias – respirou fundo e tentou explicar.
– Meus textos são em geral divertidos, talvez sob a influência do Luis Fernando Verissimo. Também escrevo contos escrachados – e aí os influenciadores são Jorge Amado, Nelson Rodrigues e o mestre Carlos Zéfiro, passei horas com os catecismos dele em uma das mãos – riu, malicioso. – E com a idade, a proximidade da morte, passei a escrever também contos tristes e melancólicos. Desses, não sei quem foi o influenciador.
Percebeu que Rubião mal ouvia suas palavras, olhava não para seu rosto e sim para a cama, por trás dele. Voltou-se e viu um corpo deitado. Seu corpo.
– Tava achando que era parte de um sonho, né mesmo, contista? – disse o fantasma, em tom suave e olhando-o com carinho. – Cê teve sorte, morreu enquanto dormia, sem muita dor… Não, não vim aqui para verificar eventuais plágios, e muito menos para discutir literatura. Queria guiá-lo até o astral, pedi esse privilégio, por termos leitores fiéis em comum, e me foi concedido.
Segurou-o pela mão e os dois começaram a se desmaterializar, rumo a outro plano, onde teriam tempo de sobra para discutir influências, ressonâncias, leões devorados, a vida sexual de monstros e dragões e coisinhas que tais.