Dilúvio
Noé, a Arca do Fim do Mundo e as mudanças climáticas
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A narrativa de Noé e do Dilúvio, presente no livro do Gênesis, constitui um dos mitos mais intrigantes da tradição judaico-cristã abordando o pecado dos homens e o castigo divino. Segundo o relato bíblico, “Viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra” (Gn 6:5) e, por isso, decidiu purificá-la por meio das águas. E assim juntou as águas do Céu e da Terra submergindo todas as terras planetárias e a humanidade pecadora. O dilúvio bíblico configura-se como símbolo de destruição e, simultaneamente, de renovação. Noé, o iluminado, recebeu a missão de construir uma arca que abrigasse sua família e representantes das espécies animais (Gn 6:19-20).
O dilúvio assume forte dimensão simbólica, pois as águas representam tanto a ira divina quanto a possibilidade de um novo começo. O arco-íris, surgido após o recuo das águas, é apresentado como sinal da aliança entre Deus e a humanidade: “Porei o meu arco nas nuvens, e será por sinal da aliança entre mim e a terra” (Gn 9:13).
Assim como nos tempos de Noé, a humanidade atual enfrenta ameaças de destruição como consequência de suas próprias ações sobre a Terra. O aquecimento global, a intensificação dos fenômenos climáticos extremos, o degelo das calotas polares e o aumento do nível dos mares são indicadores de um “dilúvio moderno”, desencadeado pela degradação ambiental e pelo uso desmedido dos recursos naturais.
Sem dúvida alguma, o aquecimento global é um dos maiores desafios contemporâneos, sobretudo em razão do derretimento das calotas polares e geleiras, que resulta no aumento do nível dos oceanos. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2023) projetou que o nível do mar poderá subir entre 0,5 a 1 metro até o final do século, impactando diretamente áreas costeiras densamente povoadas. Ao que parece a catástrofe climática já foi iniciada, o que pode ser constatado pelas elevadas temperaturas na Europa e Américas, com os termômetros alcançando facilmente a marca dos 45 graus. As elevadas temperaturas atmosféricas são seguidas de tempestades e inundações, inclusive em cidades de clima desértico, como Dubai.
Quanto à elevação dos níveis oceânicos, entre as principais cidades ameaçadas, destacam-se Jacarta, Bangkok, Xangai, Mumbai, Veneza, Amsterdã, Londres, Nova York e Miami, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Recife, São Luiz, João Pessoa e Porto Alegre, que concentram milhões de habitantes em zonas litorâneas e já apresentam sinais de submersão. Na África as ameaças de inundação pairam sobre Alexandria (Egito) e Lagos (Nigéria).
Se o dilúvio bíblico durou quarenta dias e quarenta noites (Gn 7:12), o atual processo de transformação climática já se estende por décadas, marcado pelo incremento das emissões de gases de efeito estufa, resultante da poluição e o desmatamento em níveis alarmantes. Nesse sentido, pode-se afirmar que o pecado contemporâneo é a ganância humana e a irresponsabilidade ambiental, ambos ameaçando a continuidade da vida no planeta. Como adverte o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’ (2015), “o desafio urgente de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral” (LS, n. 13). Até aí tudo bem. Só falta combinar com os governantes e empresários nacionais e multinacionais.
A arca, por sua vez, pode ser interpretada como metáfora da responsabilidade coletiva de construir refúgios éticos, sociais e tecnológicos que possibilitem a preservação da vida diante da crise climática. Não se trata apenas de uma embarcação literal, mas de todas as formas de cooperação global, políticas públicas, acordos internacionais e práticas sustentáveis que funcionem como instrumentos de salvação da humanidade. A solução encontrada, entretanto, é para poucos. Aliás muito poucos, que corresponde a segmentos das elites mundiais que criam refúgios subterrâneos, os bunkers, fortalezas construídas para proteger os “eleitos” das hecatombes anunciadas. Será?
Assim, o mito de Noé permanece vivo, não apenas como memória religiosa, mas como arquétipo universal. Ele nos recorda que a destruição pode ser evitada se houver consciência, justiça e respeito à vida. Se no passado o Senhor anunciou: “Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem” (Gn 8:21), hoje a responsabilidade da preservação recai sobre a humanidade.
Na leitura contemporânea do dilúvio, portanto, o mito deixa de ser apenas lembrança de um castigo divino e converte-se em alerta profético: se não agirmos, o “dilúvio” das mudanças climáticas poderá nos surpreender. Cabe a nós erguer uma nova arca — não de madeira, mas de solidariedade entre os povos e compromisso com as futuras gerações.
Qual a sua opinião sobre o que há e o que virá?
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Hussein Sabra el-Awar
Membro Conselheiro do Colégio dos Magos e Sacerdotisas
@colegiodosmagosesacerdotisas