Indeciso, neutro, imparcial?
O 18 DE BRUMÁRIO DO ISENTÃO AMAURI BACAMARTE
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Desde que tomou consciência da própria existência, Amauri sempre entrava em pânico quando tinha que fazer uma escolha, optar por uma ou outra coisa era um dilema que beirava o insuportável.
Segundo as suas mais recônditas lembranças de infância, tudo começou quando o seu pai, Luís Bacamarte, levou-o a uma loja de brinquedos e perguntou se ele preferia uma bola de couro ou um carrinho de plástico como presente de aniversário.
-E então, filho, o que você prefere?
-Não sei bem, pai, respondeu Amauri, gaguejando e suando frio.
Ironicamente, acabou por ganhar uma fantasia do The Flash, ídolo de infância do pai.
Na escola, não era nenhum gênio, mas também não ficava na turma da recuperação. O drama era ter que escolher um esporte para praticar na hora da Educação Física: futebol, basquete ou vôlei?
Não tinha convicção! Então acabava ficando na reserva das três opções, sem nenhuma vontade de entrar em campo ou em quadra.
Agradecia sempre a Deus por ter que vestir o uniforme do colégio todos os dias, assim não precisava escolher que roupa usaria, tarefa assumida pela mãe nos fins de semana.
Todavia, à medida em que o tempo passava, o conforto de evitar escolhas ficava cada vez mais complexo e, muitas vezes, impraticável.
-Para que time você torce, Amauri? Corinthians, Palmeiras, São Paulo ou Santos?
Aterrorizado com os questionamentos dos amigos, todos torcedores convictos de um dos quatro grandes de São Paulo.
Amauri tentava se safar como podia para não responder.
-Eu…eu gosto da Portuguesa!
Preocupados com a crônica insegurança do filho, os pais de Amauri avaliaram que um pet poderia ajudar a desenvolver a sua autoconfiança.
-Amauri, você quer um cachorro ou um gato?
-Não sei, mãe…talvez melhor um passarinho…ou quem sabe um peixe. Quando a turma precisou mudar de sala, a professora anunciou:
-Vamos entrar na sala nova por ordem alfabética, à medida em que vocês forem entrando, escolham uma carteira para sentar. Amauri, você é primeiro a entrar e
escolher o seu lugar.
Apavorado, Amauri entrou na sala e permaneceu em pé, ocupando a última carteira que sobrou.
E foi assim nessa toada até o início da vida adulta.
No momento de fazer o vestibular, frente à arraigada indecisão do filho, o pai teve que escolher o curso para ele. Optou por indicar Direito, sua própria formação.
Quando se tratava de política, Amauri se autoproclamava “de centro”.
Tentava sempre criticar simetricamente esquerda e direita, acreditando que assim pareceria descolado e imparcial, com a vantagem de nunca se comprometer.
Sempre definia – aleatoriamente – o seu voto apenas quando já estava frente à urna eletrônica, a exemplo dos indefectíveis vinte por cento de “indecisos” tradicionalmente catalogados pelo Datafolha.
Amauri continuou tocando a vida vestindo a armadura da “neutralidade”, invariavelmente abraçado na comodidade da não opção e da tergiversação de opinião.
Entrementes, veio a pandemia e o seu pai foi uma das milhares vítimas fatais da Covid- 19 no país.
Após o sofrimento do enterro nas condições cruéis e desumanas do período, Amauri teve o pior pesadelo da sua vida.
Seu pai lhe apareceu em sonho, expressão triste, falando desconsolada e pausadamente:
-Meu filho, eu falhei com você! Você nunca teve coragem para fazer as suas próprias escolhas, você não tem uma identidade existencial ou uma perspectiva de cidadão, e eu sei que contribuí para isso. Me perdoe!
Sobressaltado, Amauri acordou suando em bicas.
Depois de recuperar a consciência da realidade, ligou a TV e viu o governante que deveria estar trabalhando para evitar as mortes, debochando afrontosamente de quem sentia falta de ar em função da terrível e implacável moléstia.
Revoltado, Amauri soltou um palavrão e pensou:
-E eu não quis me comprometer, votei nulo no segundo turno porque não queria validar nenhum radical… para mim eram todos iguais. Meu pai tem razão, eu sempre fui mesmo uma ameba, um frouxo, um vacilão, uma nulidade!
Recapitulando dolorosamente a sua vida de não escolhas, Amauri sentou-se na cama. Então, mais do que nunca, sentiu-se invisível e chorou copiosamente por quase uma hora.
Na manhã seguinte, abraçou a mãe e ficaram assim por um bom tempo.
-Filho, você vai sair? Já separei uma roupa para você vestir.
-Obrigado, mãe! Mas daqui para frente pode deixar que eu faço isso, disse Amauri, com inaudita convicção.
-Tem certeza, filho?
-Sim! Decidi ser o imperador da minha vida! Acertando ou errando, elogiado ou criticado, quero ter o prazer de fazer todas as escolhas a que tenho direito.
Surpresa, a mãe beijou o rosto de Amauri, feliz com aquele surpreendente “Dezoito de Brumário do bem” decretado pelo filho.
-O Mathieu que havia em mim morreu, mãe, falou Amauri, referindo-se ao personagem central da obra de Sartre “A idade da razão”, sua leitura preferida na adolescência.
-Quem está no comando agora é o verdadeiro filho de Luís Bacamarte, complementou, orgulhoso.
-Isso, meu filho ,vai travar as tuas lutas, vai ser gauche na vida!
Então, impávido, Amauri declarou-se publicamente são-paulino, agnóstico, antifascista, nacionalista-legalista, admirador de um destacado ministro do STF e ainda inscreveu-se em um curso preparatório para concursos da magistratura.
Não sabia que futuro o esperava, mas sentia-se pleno por não ter mais a ojeriza por escolhas e a neutralidade de opinião como GPS dos seus caminhos.