Curta nossa página


O cheiro da rua

O diário íntimo de um escritor que descobre na rua uma inspiração invisível

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Dia 7 de maio, quarta-feira

Ao cair da tarde, quando as sombras se esticam sobre as fachadas envelhecidas desses prédios, olho a rua pela minha janela, sinto uma necessidade imensa de sair. Daqui onde estou, vejo o antigo colégio em frente. Na entrada, sobre uma marquise, está a imagem de santo em tamanho natural. Usa um capuz, segura um cajado na mão, é feita de metal, está escurecida. Acho-a soturna, e não gosto de olhar para ela quando estou na rua, lá embaixo. Daqui não me importo. A janela de minha sala fica bem acima da copa das árvores, sou observador privilegiado da vida que se passa na calçada.

Vejo uma moça com seu cachorro. Ela passa quase todo dia, sempre no mesmo horário. Hoje está de blusa bege, short azul, cabelos pretos, presos atrás da cabeça.

O homem que trabalha na oficina mecânica da esquina se afasta do estabelecimento e vem falar ao telefone quase em frente à minha portaria. Fala alto, gesticula, e vai fumando um cigarro atrás do outro, sem parar. Parece com raiva.

Um gari varre as folhas que estão caindo das árvores em maior quantidade nesta época.

Lembro de Amanda, que conheci no inverno do ano passado. Eu a amei, mas nosso namoro não chegou ao inverno seguinte.

Dia 9 de maio, sexta-feira

Ontem eu sentia necessidade de sair. Mas não tenho pretexto para isso. A escrivaninha, cheia de papéis amarfanhados e páginas em branco, sufoca-me como uma prisão. A luz é tênue, amarela, sinto frio. A caneta repousa como um objeto inútil. O cursor do mouse, piscando na tela do computador, parece zombar de mim com seu ritmo impiedoso. Escrever tem se tornado impossível. Cada frase nasce morta, cada ideia, ao surgir, desmancha-se como fumaça.

O homem da oficina está lá, com uma perna esticada e o pé da outra perna apoiado sobre o muro do colégio, fumando. Um motoqueiro para perto dele, pede para que lhe dê fogo, e também fica ali, fumando um cigarro. É chegada a hora da moça que passeia com o cachorro, mas parece que hoje ela não veio.

Dia 9 de maio, 17h39 – a moça aparece com o cachorro. Está de vestido hoje, estampado. A estampa é pequena, eu não consigo enxergar os detalhes aqui de cima.

Dia 12 de maio, segunda-feira

Eu era um jovem escritor com fome de palavras, mas as palavras, ingratas, não vinham. Ficavam escondidas atrás de alguma porta fechada em minha mente, e eu não encontrava a chave.

Foi então que o cheiro da rua começou a me salvar, ou a me perder, nunca soube ao certo. Havia nele algo de promíscuo, mistura de lixo e de flor noturna, de gasolina e de suor humano, de mofo e umidade.

Seria da copa das árvores? Da madeira velha da moldura da janela desse apartamento? Esse cheiro que vem da rua me prende mais do que qualquer parágrafo que eu pudesse inventar. Senti-o, inadvertidamente, quando chegara à janela para respirar a longos haustos e sentir o ar fresco renovar o meu interior.

A moça passa com o seu cachorro. Ele está meio claudicante. Terá se machucado? Ela resolve atravessar a rua, ele hesita. Ela o pega no colo, trata-o com carinho e vai.

Dia 15 de maio, quinta-feira, 21h

Hoje estou atrasado em minhas notas. Resolvi sair esta noite, e passarei a sair todas as noites. Vou criar um ritual. Um ritual secreto. O bairro me recebe com o ruído distante de televisores e o ladrar de um cão esquecido em algum apartamento. O pisca-pisca silencioso da entrada de um edifício quando o portão da garagem se abre, o zunido da motocicleta do entregador de comida.

Eu caminho lentamente, respirando fundo, como se cada molécula de ar fosse matéria-prima de um romance grandioso, e sinto uma integração com tudo à minha volta, difícil de compreender. Amo todas as pessoas. Especialmente a menina que passeia com o cachorro. Hoje ela não veio, ou eu não a vi.

Dia 20 de maio, terça-feira

Andava pela calçada, no quarteirão do meu prédio. Pisava as pedras portuguesas com passos vadios, desviando de buracos, um monte de folhas úmidas e algum dejeto de cachorro – que cretino deixa a sujeira de seus bichos displicentemente pela rua? Certamente não é a moça que passeia com o cachorro. Ela é daqueles que levam consigo um saquinho de supermercado e catam o cocô do cachorro.

Enquanto caminhava para lugar nenhum, aquele cheiro penetrava por minhas narinas, chegava ao meu cérebro e despertava algo assim como uma sensação de repulsa e acolhimento, ao mesmo tempo, como se me chamasse a um despertar para nenhum caminho, ou me lembrasse de coisa esquecida, lá no fundo da alma, e eu não sabia o que era. Eu odiava e era envolvido por aquele cheiro, e quase me lamentava porque há semanas não chovia. A chuva deixaria o petricor, lavaria as ruas e amenizaria aquele cheiro opressivo, denso, indesejado, abjeto que me fascinava e me fazia consciente de minha posição no mundo.

Como será o cheiro da moça que passeia com o cachorro?

Dia 25 de maio, domingo

Nas calçadas, as histórias surgiam como labaredas. Eu via, no vulto de uma mulher que fechava as janelas, a heroína de uma trama trágica; no bêbado que ria sozinho na esquina, um filósofo maldito; no garoto de bicicleta, o prenúncio de uma aventura.

Minha mente se incendiava de cenas, diálogos, capítulos inteiros. Era como se eu tivesse, dentro da cabeça, um romance já pronto, apenas aguardando a transcrição. Eu quase corria para casa, ansioso por despejar tudo no papel.

Onde andarão a moça e seu cachorro?

Voltei para casa, eram quase 23h. Ao me sentar diante da mesa, o milagre se desfez. Não conseguia digitar, fui escrever à mão. A caneta parecia pesada demais, as frases se enrolavam umas nas outras, e o frescor da inspiração evaporava. Restava apenas a lembrança vaga do que eu havia sentido, como o eco de uma música esquecida. Então eu fechava os olhos, tentando agarrar qualquer rastro daquilo. O coração ainda acelerado, o cheiro da rua impregnado na pele, mas nada se transformava em palavra. Era como segurar água com as mãos abertas: escorria, sempre. Eu ia usar a imagem de um torrão de açúcar colocado num copo de água. Mas eu nunca vi um torrão de açúcar. Só uso açúcar refinado.

Eu passei em frente ao prédio de Amanda. Tenho certeza absoluta de que ela havia estado ali alguns instantes antes. O perfume dela estava no ar. Fiquei com receio de perguntar ao porteiro se ele a tinha visto. Quase arrumei problemas da vez que fiz isso.

Dia 31 de maio, sábado.

Fui almoçar num restaurante da praça. Tinha uma feira de adoção de bichos bem ali. E, de repente, quem aparece? A moça, sem o cachorro. Quase deixei o prato na mesa e fui vê-la de perto. Comentar alguma coisa, admirar os bichinhos fofos junto dela. Acho que vou adotar um cachorro. Poderia ser um pretexto para sair a passear também, e encontrá-la. Puxar assunto… Quem sabe? Fiquei observando-a de longe. Chegou a pegar um cachorro, filhote, numa das gaiolas. Colocou-o perto do rosto, falou algo, depois devolveu o cachorro e se foi. Entrou na estação do metrô.

Dia 1º de junho, domingo.

Domingos são páginas vazias.

A única coisa digna de nota é que hoje choveu. Choveu muito. Eu nunca tinha visto chover assim.

Isso é mentira, ou exagero. Mas eu gosto disso.

Choveu uma chuva capaz de apagar para sempre o perfume de Amanda. Parou de chover, e o cheiro da rua sobe até a janela do apartamento. Eu não almejo mais nada, apenas isolar, em minhas narinas, o cheiro da rua dos outros cheiros. Amaciante, livros, uma fumaça de cigarro que, remotamente, sobe até aqui vinda da calçada, ou de algum outro apartamento, o desodorante que eu passei depois do banho, não quero saber de nada. Apenas do cheiro da rua.

Dia 6 de junho, sexta-feira

A rotina sórdida se repete enquanto as horas mal se movem. De dia, eu me consumia em frustrações. De noite, a rua me chamava de novo, e eu ia, quase obediente, como se fosse ela, e não eu, a verdadeira autora de minha vida. Sou fraco. Sinto dores morais, mas não sofro.

Comecei a desconfiar de que não escrevia mais para os livros, mas, sem palavras escritas, escrevia para a própria rua. Ou era escrito por ela?

Ela me alimentava com promessas que não se cumpriam. Era uma amante cruel, dessas que oferecem só o suficiente para manter o desejo aceso, sem nunca conceder a posse.

E, entre páginas vazias e caminhadas férteis, fui vivendo como quem escreve um romance sem letras. As noites continuaram a me dar sensações, mas não histórias. Eu era o escritor que não escrevia: um homem que colecionava cheiros, passos, silêncios. E que, talvez, já tivesse feito disso a sua literatura secreta.

Dia 11 de junho, quarta-feira

Hoje passei no pet shop e comprei algumas coisas que faltavam para o Druso. Dei muita sorte com esse vira-lata, com essa pelagem linda e esse olhar tão inteligente. A senhora do abrigo disse que ninguém o estava querendo adotar, só porque ele já não é mais tão jovem. Mas, a cada dia que passa, ele se afina mais comigo. Dorme na minha cama, e ronca. Druso ronca. E posso jurar que ele já fica feliz quando pego a coleira e o chamo para passear. Como aprende rápido.

Mais dia, menos, dia, eu ainda vou puxar assunto com a moça do cachorro. Ela tem aparecido um pouco mais tarde esses dias, talvez tenha mudado o ritmo de trabalho?

Dia desses, tive quase certeza de que era Amanda dentro de um carro, parado no sinal perto da esquina. Mas os vidros tinham película escura, eu não identifiquei ao certo. Nem vi quem estava dirigindo.

Juro que quase senti o perfume de Amanda, mas o cheiro da rua se sobrepunha a qualquer outro naquele momento.

Aqui dentro, os outros cheiros se misturam a ração de cachorro, e do pelo de Druso quando ele vem, de banho tomado, do pet shop.

Gosto mais do cheiro da rua do que do perfume de Amanda.

……………………

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.