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O LADO B DA LITERATURA

ADALGISA NERY, POETISA DE CORAGEM E VERTIGEM, EM COMBUSTÃO PERMANENTE

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Autor/Imagem:
Cassiano Condé - Foto Reproduzida da Internet

Adalgisa Nery (Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1905 – 7 de junho de 1980) foi mais do que uma poeta: foi um vulcão de palavras, emoções e contradições. Seus versos atravessam o tempo como feridas expostas, revelando a coragem de uma mulher que transformou em poesia o que a sociedade de sua época insistia em silenciar. Jornalista, deputada e figura pública, transitou entre o brilho dos salões cariocas e a dureza da vida política, sempre carregando consigo uma aura de fascínio e escândalo. Amou intensamente, sofreu sem reservas e deixou atrás de si uma obra feita de lirismo e vertigem. Defini-la é impossível; o máximo que podemos é espiá-la por entre os véus do mito e do rumor, entre o louvor e a indiscrição.

Havia em Adalgisa Nery algo de estrela e algo de abismo. A musa que incendiava salões também carregava cicatrizes visíveis em cada poema. Foi amante de causas impossíveis, esposa de um pintor genial e instável, deputada que enfrentava ditaduras com o mesmo ímpeto com que colecionava desafetos. Dizia-se que encantava e aterrorizava com igual facilidade: um elogio seu podia elevar alguém ao céu, uma frase maldosa podia arruinar reputações. Adalgisa foi dessas mulheres que não se podiam conter em molduras ou etiquetas; bela, provocadora, contraditória, um furacão que misturava poesia e política, ternura e crueldade. Para alguns, uma deusa lírica; para outros, um escândalo ambulante. Para todos, inesquecível.

Seu primeiro marido, o pintor Ismael Nery (1900-1934), foi precursor do modernismo no Brasil. Casou-se com ele muito jovem e foi mãe sete vezes, mas apenas dois filhos chegaram à fase adulta. Aos 29 anos, já viúva, tornou-se funcionária pública para cuidar da família.

Em 1937 lançou seu primeiro livro de poemas.

Em 1940, Adalgisa casou-se novamente, com o advogado e jornalista Lourival Fontes, então à frente do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão criado por Getúlio Vargas no ano anterior para sustentar e difundir os ideais do Estado Novo.

Acompanhando o segundo marido em sua trajetória diplomática, viveu em Nova Iorque de 1943 a 1945, período em que Lourival exerceu funções ligadas ao serviço exterior brasileiro. Dali, transferiu-se para o México, onde ele assumiu a embaixada. Nessa época, Adalgisa mergulhou em um ambiente artístico efervescente, aproximando-se de nomes consagrados como Diego Rivera, José Clemente Orozco, Frida Kahlo, David Alfaro Siqueiros e Rufino Tamayo, alguns dos quais a imortalizaram em retratos.

A afinidade com a cultura mexicana a levou de volta ao país em 1952, quando representou o Brasil como embaixadora extraordinária na posse do presidente Adolfo Ruiz Cortines. Nesse contexto, recebeu uma distinção inédita: a Ordem da Águia Asteca, nunca antes conferida a uma mulher, reconhecimento de suas palestras e estudos sobre a poetisa barroca Soror Juana Inés de la Cruz.

A união com Lourival, entretanto, não resistiu às transformações da vida pessoal. Depois de treze anos de casamento, o vínculo se desfez, encerrado pela paixão dele por outra mulher.

O rompimento com Lourival Fontes marcou profundamente a vida de Adalgisa. A dor dessa separação foi tão intensa que a levou a negar a si mesma o brilho já conquistado no cenário literário. Embora fosse reconhecida como poeta de grande relevância, inclusive fora do país — na França, por exemplo, teve seus versos traduzidos e reunidos em coletânea por Pierre Seghers — decidiu renunciar à própria obra, quase como um gesto de autodestruição simbólica.

Reinventou-se, então, no jornalismo e na política. Passou a colaborar com o jornal Última Hora e ingressou na vida pública, elegendo-se deputada em três legislaturas consecutivas: inicialmente pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e, mais tarde, já no período do bipartidarismo, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Sua trajetória política, contudo, foi interrompida em 1969, quando sofreu a cassação do mandato e perdeu seus direitos políticos.

Sem recursos financeiros e já tendo transferido em vida seus bens aos filhos, Adalgisa encontrou-se sem lar na década de 1970. Entre 1974 e 1975, foi acolhida por Flávio Cavalcanti em sua residência em Petrópolis, onde levou uma existência discreta e quase reclusa. Apesar da decisão anterior de abandonar de vez a literatura, voltou a escrever e lançou novos títulos: dois volumes de poesia, dois de contos, um de artigos e o romance Neblina. A obra foi dedicada ao próprio Cavalcanti — figura controversa, taxada de delator pelo regime militar — em reconhecimento pelo abrigo recebido. Ao privilegiar a amizade e a gratidão acima de convenções políticas, Adalgisa contrariou expectativas e viu o romance ser praticamente silenciado pela crítica.

Em 1975 mudou-se para a casa do filho mais novo, Emmanuel. Pouco tempo depois, em maio de 1976, deixou-lhe apenas um bilhete e internou-se voluntariamente em um asilo para idosos em Jacarepaguá. A atitude surpreendeu o filho, que, ao regressar, não encontrou mais a mãe. No ano seguinte, sofreu um acidente vascular cerebral que lhe deixou sequelas graves e, três anos mais tarde, morreu aos setenta e quatro anos.

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Cassiano Condé, 82, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.

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