Mãe
A loba
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Naquele dia não havia movimento perceptível nas proximidades da lagoa. Reinava uma calmaria densa e abafada, que perturbava a matriarca da família, oculta entre as raízes de uma grande árvore. Os cinco filhotinhos mamavam, esfaimados como sempre, o grandalhão mais afoito, empurrando os irmãos e revezando os mamilos; o pequenino, mais fraco, mamava onde podia, onde lhe sobrava, mas não se dava por vencido, sempre buscando algum espaço nas tetas gordas entre as patas traseiras da mãe, até ser novamente empurrado para as mamas menos provedoras.
Ela, por sua vez, olhava. Três filhotes medíocres e dois pontos fora da curva. Não, ela não estava menosprezando os três pequenos do meio; eram medíocres porque estavam na média: peso médio, tamanho médio, inteligência média, média capacidade de sobrevivência, a mais perfeita manifestação estatística de um lobo-guará padrão. Fadados a encontrarem seu lugar numa natureza que definhava a cada dia, sobrevivendo por um tempo médio e ingerindo com uma quantidade de calorias abaixo da média, devido à escassez de alimento. O território de caça diminuía a cada dia, a fartura de presas e vegetais de outrora já parecia um sonho distante. A mata exuberante que abrigava tantos animais vinha sendo rapidamente substituída por extensos campos de monótonas e monocromáticas ervas que não se podia comer (não um lobo), ou por extensas pastagens coalhadas de presas enormes que não se podia caçar (não um lobo).
O filhote grande e o pequeno também tinham seus destinos selados. O primeiro seria o destaque; forte, tomaria o território dos outros lobos médios, alcançaria eficiência de caça acima da média e ingeriria carne acima da média; ficaria maior e mais ousado, chegaria mais perto das criações dos humanos, aqueles frangos domésticos vulneráveis e de instintos débeis, presas fáceis e gordas para um caçador selvagem. Proeminente e destemido, mas também visado, acabaria caçado, apresado pela boca fumegante de uma espingarda, seu corpo forte e belo empalhado para enfeitar um show de horrores num canto empoeirado de um galpão ou largado para apodrecer na beira de um regato. O outro, sem território de domínio, impulsionado pela fome inadiável, chegaria perto demais das criações dos humanos, aqueles frangos domésticos vulneráveis e de instintos débeis, presas fáceis e gordas para um caçador medíocre, digo, ineficiente. Acabaria acuado pelos cachorros ou apresado pela boca fumegante de uma espingarda, seu corpo débil empal
hado para fazer número em um show de horrores num canto empoeirado de um galpão ou largado para apodrecer na beira de um regato. Dois caminhos distintos, chegando ao mesmo lugar. É a viagem que conta?
A mãe lobo foi tirada de suas reflexões por latidos distantes de cães de caça. Os latidos dos cachorros eram sempre um mau presságio. Logo a calmaria perturbadora foi substituída por uma inquietude alarmante: animais de todas as espécies, desde os menores e mais inofensivos até os portadores das piores peçonhas e das presas mais afiadas colocavam-se de prontidão, dispostos a fugir ou atacar ante qualquer presença inesperada. Os cães se aproximaram um pouco, mas ainda deveriam estar do outro lado da grande lagoa fronteira à toca lupina. Mãe-loba sabia que ainda não precisava lutar – fugir não estava entre as possibilidades aceitáveis. Do outro lado da lagoa, veio o rugido de uma onça, seguido de um estampido seco. Os pássaros alçaram voo, barulhentos, alertando ao mundo que alguma coisa grave ocorrera. Os ouvidos afiados de mamãe perceberam um som muito sutil e afastado, assemelhado a um gemido ou um lamento. Naquele dia ela não sairia da toca.
Com a noite, porém, a fome ganhou força e aos poucos eclipsou o receio gerado pelos acontecimentos diurnos. Desde que o pai dos filhotinhos saíra para buscar alimentos e não regressara, mamãe tinha de se virar como podia. Na primeira incursão noturna na busca por comida percebera o rastro já fraco do macho desaparecido. Seguindo-o um pouco, logo identificou também, sobreposto ao primeiro, o inconfundível cheiro de uma onça. Fácil entender o que havia acontecido. Quem pode contra a toda-poderosa daquelas paragens? Certamente o macho não fora esperto o suficiente para perceber a emboscada, tampouco ágil o suficiente para fugir. Restou à matrona tornar rotina as saídas noturnas para garantir sua sobrevivência e a dos rebentos, ainda jovens demais para acompanhá-la. As perambulações tinham de ser rápidas, sem tempo para escolher o cardápio. Sementes em geral e até aqueles detestáveis artrópodes, de gosto horrível, mas fonte de importantes proteínas. Uma carcaça qualquer era sempre bem-vinda, mas geralmente não havia tempo para caçar os apreciados roedores que viviam pelas redondezas. Necessário se contentar com uma dieta mais vegetariana, porém carne fresca fazia falta.
O problema é que as fontes de alimento ficavam cada vez mais longe. Nessa noite, mamãe saiu da toca já sabendo que seria difícil acalmar o estômago. Teria de caminhar bastante para encontrar algo comestível, mas ao mesmo tempo o corpo magro e extenuado protestava contra a longa caminhada, avisando que toda a energia possível deveria ser poupada. Equalizar o gasto de energia, o tempo dispendido e os recursos obtidos, essa era a complicada matemática que mamãe precisava equacionar o mais sabiamente possível para garantir sua própria vida e a perpetuação de sua linhagem.
Decidiu contornar a lagoa, sempre atenta aos grandes felinos que naquelas bandas habitavam – não esquecera o destino do parceiro sazonal. Avançava cautelosamente, as grandes orelhas como radares rastreando o entorno, o faro na incessante busca por qualquer coisa comestível. Uns parcos vermes sob um tronco podre serviram de aperitivo, mas não foram suficientes para justificar a empreitada. Precisava continuar.
Aproximava-se já do ponto diametralmente oposto à sua toca. A distância do ninho deixava-a aflita, uma vez que seus filhotes estavam desprotegidos, sujeitos aos ataques dos outros predadores noturnos. Um cheiro a incomodava já há muito nessa perambulação. Farejou, decidiu seguir o cheiro. Afastou-se um pouco da lagoa e entrou num capão de mata densa, porém amassada e remexida. No chão, uma mancha escura com cheiro de sangue… de onça! Chegara ao local do abate, da queda da soberana da lagoa. Vistoriou o local com cuidado, lambeu os capins melados com a seiva da grande felina. Exceto alguns pelos e fluidos, nada sobrara dos despojos da enorme predadora. Nada comestível, que era o principal interesse da loba, fora a curiosidade. Nenhum sentimento de tristeza, nenhum medo, nenhum sentimento de vingança pelo macho devorado (no próximo período reprodutivo viria outro). Questões mais práticas urgiam. Voltou à busca, precisava se alimentar logo e retornar para casa.
Mas no ar ainda havia outro odor que lhe atraía, que ela reconhecia e estranhava ao mesmo tempo. Uma trilha no mato alto parecia apontar diretamente para sua origem, subindo um pequeno aclive que representava um esporão do morro mais afastado. Era a trilha que levava ao covil da onça. Aproximou-se cautelosa (a dona daquele lar estava morta, mas às vezes os instintos falam mais alto). Olhou os blocos de calcário que, apoiados uns sobre os outros, formavam uma pequena gruta, inesperada ante a grande planura daquele pedaço de terra entre o Cerrado e o Pantanal.
Entrou na toca com cuidado, esquadrinhando cada pedacinho de chão, de teto, de parede, atenta para perceber com os outros sentidos o que a escuridão não deixava enxergar. No fundo da pequena gruta, porém, uma presença se acusou através de um olhar faiscante: a sucessora da rainha aguardava ansiosa a chegada da mãe, mas agora estava frente-a-frente com uma desconhecida que poderia ser perigosa. A pequena onça deixou de lado a cautela e clamou por ajuda. Seus agudos miados cortavam a noite à procura de proteção. Não sabia que era em vão.
Mãe-loba puxou devagar a ainda inofensiva felina para fora de seu antro. Pensou em seus filhotes, esfomeados. Olhou a filhote em sua frente e lambeu sua a fronte numa benção. Pensou em seus filhotes, desprotegidos no ninho. Qual seria o futuro daquela órfã? Talvez os caçadores voltassem no dia que já começava a despontar, buscar a filhote e levá-la para fazer par com a mãe, seus corpos empalhados para enfeitar um show de horrores num canto empoeirado de um galpão ou largados para apodrecer na beira de um regato…
A madrugada definhava lentamente e cedia lugar à tênue luz do amanhecer. Mãe-loba agora podia divisar melhor a oncinha à sua frente, os olhinhos assustados e lacrimosos, o corpo trêmulo de movimentos hesitantes, fraco após tantas horas de jejum. Mãe-loba pensou nos cães ladrando, no tiro, no capim melado; pensou na cansativa caminhada até ali. Pensou em seus lobinhos e em voltar para o lar. Gentilmente ergueu a pequena onça pelo cangote e, num rápido movimento de cabeça, lançou-a no ar, abocanhando-a em seguida. Engoliu praticamente numa bocada só. Lambeu-se, olhou em volta para se certificar que estava em segurança e correu em direção ao lar e suas crias. No momento havia energia para isso.
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Esse não é um texto científico. Foram tomadas liberdades em relação ao comportamento dos animais descritos. Igualmente, o uso de termos humanos aplicados aos animais é intencional.
O conto “A Loba” foi publicado originalmente no livro: SILVEIRA, Cassiano. Tr3s contos sobre mães famintas e outros textos que devoram. Curitiba: Eu-i, 2022.
Instagram – @siano_silveira