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Português escorreito

Mitos e perrengues de uma língua que salva os homens na velhice

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Editoria de Artes/IA

Em recente mensagem codificada do além, meu avô Aristarco Pederneira me recomendou parar de escrever a respeito de política, principalmente sobre a dupla sertaneja Lula & Bolsonaro. Resolvi atendê-lo. Saí pela rua à procura de mim de mesmo e, de cara, descobri que a língua portuguesa vive me pregando peças. Além de língua potencialmente machista, existem as pegadinhas. Outro dia, em um desses mercadinhos de bairro, me deparei com uma promoção daquelas que nem cego deixa de ver e avaliar. Entre envergonhado e louco para experimentar as novidades das vinícolas d’além mar, sequer olhei a plaquinha desenhada com letras góticas para chamar ainda mais a atenção da clientela.

Só me dei conta do mico quando já estava no caixa com a pesada e pomposa embalagem contendo os três vinhos de marcas diferentes. Foi aí que li o que estava escrito: “Na compra de Periquita e Anus, você leva Rola de graça”.  Tentei contra-argumentar, mas, diante das evidências enólogas, solenemente me calei.

Tudo indica que faltei à aula em que meu avô Aristarco Pederneira, português de quatro costados , divagou sobre a extensa lista de vinhos portugueses com nomes que atiçam a malícia dos brasileiros. Vale Veados, Perereca do Monte, Rapariga da Quinta, Pinto, Três Bagos, Buçaco Branco, Vinha do Putto e Monte dos Cabaços eram os preferidos do portuga boa praça de Trás os Montes.

Português para poucos, vovô era daquelas figuras escorreitas e que só nascem uma vez. Fumando de três a cinco charutos por dia, bebendo vinho e whisky importado todas as noites, comendo lagosta três vezes por semana e visitando a namorada em Pelotas, no Rio Grande do Sul, o velho chegou, a contragosto, somente aos 109 anos de idade. Faz dois anos a família teve de sacrificá-lo, pois estava ficando muito caro sustentar seus modismos. Sem muitas explicações, foi melhor assim. Melhor para todos.

Embora tenha alcançado o ápice do modernismo humano, vovô lembrava sempre à ninhada de netos que, no seu tempo, os chassis das meninas de Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca batia certinho com os documentos. E era verdade. Não havia beiços, seios ou bumbuns de borracha. As maçãs da face eram as de berço, isto é, ainda não tinham virado jacas moles. O mais importante é que o capô de Fusca não apresentava remendos obviamente do tipo manchão.

O velho viveu enquanto pode. Entretanto, infelizmente partiu e não teve a oportunidade de descobrir quantos pelos pubianos cabiam no sabonete do Tony Ramos. Brincalhão, ele só perdia a piada quando o bonde atravessava seu caminho. Metido a cozinheiro, certa feita ele foi à vendinha onde comprava fiado e chegou ao caixa com dois engradados de cerveja. Meio sem graça, a mocinha informou ao velho que bebida alcóolica só com pagamento à vista.

Sem ruborizar, vovô informou que era uma receita nova, talvez frango com molho de laranja e cerveja. Se fazendo de desentendida, a simpática jovem indagou se uma simples receita de frango necessitava de 48 cervejas. “O frango é dos bitelos”, respondeu o portuga. Quando algum dos netos, vizinhos ou sócios antigos da Torcida Jovem do Flamengo queria saber como vovô se mantinha competentemente ereto aos 109 anos, ele se limitava a dizer que todo seu potencial era decorrente do sexo.

Muito sexo, dizia o velho, lembrando comumente que a ciência já provou que, além de uma série de prejuízos físicos, pouco sexo diminui a memória. Aos questionadores de plantão, ele tinha a resposta na ponta da língua. Aliás, foi justamente o órgão responsável pelo paladar a redenção do meu avô Aristarco Pederneira. A primeira e última vez que vi o velho chorar foi por ocasião do recebimento de um telegrama de um velho amigo da primeira versão da atual Clínica da Família: “Prezado Aristarco, informamos que o resultado da análise da mancha vermelha em seu Al Billau não era batom. Lamentamos a amputação”. A língua o salvou.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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