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Cúmplices

Lorena entrou por último, fechou a porta e aguardou

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Começou com uma brincadeira.

– Lorena, pode vir na minha sala, por favor?

O convite/ordem viera de Ednardo, diretor de redação em uma editora carioca. Ele seguiu para a sala sem olhar para trás, mas conhecia seu gado, podia ver mentalmente a careta de Lorena, de “Putz, tô com algum problema?”, logo substituída por um sorriso triunfante, de “Não, acho que vem promoção por ai”. Ele também sorriu, lembrando de uma passagem de Grande Sertão: Veredas, na qual um personagem diz algo como na raiz de todos os males, está um desmedido amor a si mesmo. “Esse é o problema de Lorena, boa redatora, mas se acha o último biscoito do pacote”, pensou.

No caminho, parou na salinha de Soraya, vice-diretora de redação. Era mais que isso, era sua melhor amiga e sua cúmplice. Convocou-a a participar da reunião e acrescentou em voz baixa:

– Esta noite se improvisa.

Foi o suficiente.

Lorena entrou por último, fechou a porta e aguardou.

– Lorena, aprecio seu trabalho, vou lhe contar como as coisas funcionam realmente por aqui – improvisou Ednardo. – Uma vez, por mês, de noite…

– Noite de lua cheia – complementou Soraya, entrando na brincadeira.

– … de lua cheia – retomou Ednardo –, eu e Soraya vestimos longas capas escuras, colocamos máscaras no rosto e seguimos até um cemitério…

– Ou a uma igreja abandonada – complementou a cúmplice. – É importante que seja solo consagrado.

– Consagrado – ele concordou. – Ali, em silêncio, colocamos os mantos e as máscaras e abrimos uma urna contendo os nomes de todos os membros da redação. Nós nos alternamos na leitura de cada nome, e movemos o polegar para cima ou para baixo. Dois polegares para cima, possibilidade de promoção; em direções opostas, nada acontece, um neutraliza o outro. Mas dois polegares para baixo… – e sacudiu a cabeça, como se estivesse pesaroso.

– Demissão sumária – interveio a vice-diretora. – Ou muito pior – acrescentou com voz lúgubre.

Lorena tremia que nem vara verde. Nem lembrou que os dois nunca haviam demitido funcionário algum. E não ousou perguntar se já havia sido avaliada. Ou o que significava o “muito pior” de Soraya.

– Bom, é isso aí – disse Ednardo, concluindo a reunião. – Não comente com ninguém.

Ficou um “ou então…” soando silenciosamente na sala. Todos o ouviram, em especial a pobre redatora, que deixou o recinto, meio trôpega.

– É uma anta convencida, metida a besta – resumiu Soraya.

– É sim – concordou seu cúmplice. – É o que a torna a vítima perfeita. Precisamos dessas brincadeiras de improviso, do contrário não aguentaríamos esse trampo.

O tempo passou, Ednardo foi demitido, Soraya, bem mais jovem, arranjou emprego em outra editora. Oito anos depois, ela recebeu um pacote em sua casa, na serra fluminense. Abriu-o e viu uma capa negra e uma máscara de lobo. Havia também um bilhete sem assinatura: “Minha casa, sábado, às 23 horas”. Ela soube na hora de quem era.

Na hora marcada, a cúmplice chegou à casa de Ednardo. Ele abriu a porta em silêncio, mostrou sua capa preta, sua máscara de tigre, e só então falou:

– Siga-me no seu carro.

Era noite de lua cheia, mas não se dirigiram a um cemitério, nem a uma igreja abandonada, e sim a um lixão deserto. Ele envolveu-se no manto e colocou a máscara, ela fez o mesmo. Em silêncio, ele entregou-lhe um punhal. Depois, abriu o porta-malas e tirou de lá a vítima – não a imbecil da Lorena, mas um garotão sarado, vestido com uma camisa da seleção canarinho.

– Eu o vi ateando fogo em um sem-teto e rindo que nem um demônio.

Não houve polegares apontados para baixo, não foram necessários. Com um rosnado, os dois cúmplices cravaram os punhais no peito do carinha. Depois retiraram as armas – seriam úteis no futuro –, deixaram o cadáver ali, sobre o monturo de lixo, e foram embora sem se despedir.

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