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Coragem e crença

Carrancas do Velho Chico agem como os guardiões das águas e dos espíritos

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Autor/Imagem:
Paulus Bakokebas - Foto Editoria de Artes/IA

No espelho d’água do Rio São Francisco, onde o tempo parece correr mais devagar, navegam embarcações que carregam em suas proas rostos de madeira — ora ferozes, ora caricatos — conhecidos como carrancas. Olhos arregalados, dentes pontiagudos, bocas escancaradas em gritos mudos: figuras que misturam arte, superstição e devoção. Para os ribeirinhos, elas não são apenas ornamentos. São protetoras das águas e dos homens que nelas se aventuram.

Essas esculturas surgiram como amuletos fluviais, guardiãs contra os maus espíritos, as tempestades e as assombrações do rio. No imaginário popular, as carrancas afastavam o azar, impediam o afogamento e espantavam o “encantado”, o invisível que habita o São Francisco. Cada barqueiro confiava à sua carranca o papel de vigiar o percurso, como se o barco fosse um ser vivo com alma e olhos na madeira.

Curiosamente, a crença não é exclusiva das margens do Brasil profundo. Nos fiordes e mares gélidos da Escandinávia, os vikings também adornavam seus navios — os temidos dracares — com cabeças de dragões, serpentes e monstros marinhos. O propósito era semelhante: intimidar inimigos e afastar espíritos malignos. Assim como as carrancas do sertão, os dragões nórdicos rugiam silenciosamente contra o medo e o desconhecido.

O que une o barqueiro do Velho Chico e o guerreiro do Norte é o mesmo instinto ancestral: o de proteger-se daquilo que não se vê. Madeira esculpida, pintura, fé e medo misturam-se em cada figura, como se o homem, ao navegar, precisasse sempre de um guardião à frente — alguém que enfrentasse os fantasmas do rio ou do mar.

Hoje, as carrancas resistem não apenas nas águas, mas nas feiras e museus, transformadas em símbolo do São Francisco e da alma sertaneja. Guardam em seu olhar de madeira a memória de um tempo em que a travessia era também um ritual, e navegar, um ato de coragem e crença.

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