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Risíveis amores em quatro atos (Epílogo)

Ato-4: DANÇA COM LOBOS

Publicado

Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

— Então, Marco, assim acabou a história…não quero mais saber de Tínder!

— Lamento, JC, mas isso não deveria fazer você desistir de ser feliz.

— Não desisti, mas a verdade é que o Chico deve ter se inspirado em algum ectoplasma meu quando compôs “Até o fim…”

— “Quando nasci, veio um anjo safado, o chato dum querubim, e decretou que eu tava predestinado, a ser errado assim, já de saída minha estrada entortou… “cantarolou M.A, sorrindo.

— Não brinca, não…assim fico mais deprimido ainda.

— Desculpe, amigo, não foi a minha intenção! Olha, acho que você precisa conhecer uma anti-Carolina!

— Como assim?

— Alguém com sangue nativo raiz, uma mulher intelectualizada, mas que valorize e ame a cultura dos povos nativos da América, que curta a brasilidade originária no coração e na alma.

— Não conheço nenhuma mulher com esse brilho e nem com essa chama, falou JC, desanimado.

— Hum…por coincidência, conheço três moças estadunidenses, descendentes de povos nativos originários da América, elas estão fazendo mestrado na USP. Todas amam o Brasil… e talvez até queiram se radicar por aqui, caso conheçam as pessoas certas.

— Bem, já que estou no fundo do poço mesmo, como dizia o sonso do Tiririca, pior do que tá não fica!

— Eu tenho o contato de uma delas, vou convidá-la para um happy hour com amigos e aí te apresento.

— E ela fala português?

— Fala, sim, as três estão aqui há um ano e aprendem muito rápido.

— Ainda bem, com a sorte que eu tenho, logo eu falaria alguma coisa errada em inglês e ofenderia a moça.

Já no local do encontro, dessa vez na companhia do amigo-conselheiro:

— Bem, aqui estamos, Marco, seja o que os deuses ou o que o safado do querubim quiser!

— Relaxa, amigo, estou com a sensação que dessa vez você vai se dar bem. Olha, nossa convidada chegou!

JC levantou-se para cumprimentar a convidada e, quando a representante dos povos originários estadunidenses aproximou-se da mesa, sentiu uma doce e intensa vertigem que o arrebatou para além de tempo e de espaço.

Ele parecia hipnotizado pela beleza e pela aura da moça e, simplesmente, não conseguia soltar a sua delicada mão.

Percebendo a situação e o encantamento do amigo, Marco Antônio puxou-o delicadamente de volta para a cadeira.

Recompondo-se, JC conseguiu emitir um rouco “então você está gostando do Brasil, Winona?”

— Sim, estou gostando muito! Os povos originários da América têm histórias e culturas muito similares.

— Verdade! Inclusive a minha avó materna era da etnia Guarani, um povo originário do sul do Brasil.

— Mesmo? Que interessante, eu sou descendente direta do povo Sioux. Gostaria muito de saber mais sobre o povo Guarani.

— Pois eu terei o maior prazer em falar tudo sobre a história e a cultura deles para você.

Nesse momento, Marco Antônio levantou-se sorrateiramente e, sorrindo, falou:

— Amigos, lembrei que tenho outro compromisso daqui a pouco, mas tenho certeza de que deixo os dois em ótima companhia.

JC levantou-se também, deu um abraço no amigo, ao mesmo tempo em que sussurrou no seu ouvido:

— Obrigado, Marco, valeu mesmo!

Depois de um longo colóquio que JC desejaria prorrogar indefinidamente, o dono do barzinho veio avisar o par que já estava na hora do estabelecimento cerrar as portas.

Prontamente, JC disse a Winona que fazia questão de deixá-la em casa, oferecimento que a moça agradeceu com um sorriso.

Após os novos amigos trocarem contatos e Winona já ter saído do carro e se dirigido ao portão do seu prédio, JC ligou para o amigo-cupido.

— Marco, me socorre, por favor! Fale-me mais sobre a Winona, do que ela gosta, o que ela ama, não gosta, odeia, etc.

— Hehe…nem preciso perguntar se você gostou dela, não é mesmo? Olha, nada de mais, ela gosta das mesmas coisas que você e só odeia racistas, negacionistas, supremacistas, fascistas e lixos do gênero. Você só tem que tomar cuidado com piadas ou tiradas politicamente incorretas, pois ela é muito sensível nessa seara. De resto, tenho certeza de que vocês vão se entender maravilhosamente!

— Muito obrigado novamente, amigo! Fico te devendo mais essa.

— Imagina, JC! Faça o seu melhor, relaxa e deixa acontecer…agora vai.

— Você não imagina… nunca senti isso por ninguém em toda a minha vida, sério!

— Eu acredito, vi isso assim que você olhou para ela. Boa sorte, amigo!

Aplicando-se diariamente de forma delicada, mas intensa, JC, aos poucos, foi conquistando a confiança e o afeto da linda e circunspecta estadunidense originária.

Juntos, passearam por todos os parques da cidade, conheceram e fizeram trilhas em estações ecológicas da região, frequentaram teatros e assistiram a filmes cults em salas alternativas.

À medida que conhecia melhor Winona, mais JC a admirava e sentia intensificar a aura da atração que o paralisara quando viu a moça pela primeira vez.

De sua parte, Winona dava abertura para que, paulatinamente, a intimidade entre eles fosse se aprofundando.

Lembrando da recomendação expressa do amigo, JC tomava o máximo cuidado para não melindrar a amada. Por exemplo, quando iam jantar juntos, ele dizia para ela que fez contato com o restaurante, evitando usar a palavra “reserva”.

Certa vez, quase usou a expressão “presente de índio” para se referir às meias que uma tia sempre lhe presenteava no seu aniversário, mas conteve-se a tempo.

Foi então que, exatamente na mesma noite em que trocaram o primeiro beijo, aconteceu a crise entre eles.

Após uma troca de carinhos, eles decidiram almoçar em um restaurante chinês que ficava no bairro de Winona. Ela não lembrava bem onde ficava e, coincidentemente, cruzaram na rua com um carteiro de origem chinesa.

— Amigo, você sabe onde fica o restaurante chinês aqui do bairro?, perguntou J.C.

Ofendido e irritado, o carteiro devolveu a pergunta:

— E por que você acha que eu tenho que saber? E se eu perguntar onde fica o McDonald’s mais próximo, o branquinho saberia me dizer, por acaso?

— Mas… não perguntei porque você é chinês, e sim por que é carteiro!

— Sei, já estou acostumado com vocês branquelas racistas, ficam me mandando para o meu lugar a toda hora!

Winona, surpresa e nervosa, olhou para JC e falou em tom de decepção:

— Olha, perdi o apetite! Vou voltar para casa, depois a gente se fala!

Arrasado até a medula, JC foi novamente dividir o seu infortúnio com o amigo M.A., mas, ao contrário das outras vezes em que estava apenas amargurado, apresentou-se ao amigo completamente destruído e inconsolável.

— Então, é ou não é uma questão de carma, uma sombra escura que me acompanha sem dó e nem piedade? Para mim acabou, não nasci para ser feliz mesmo, assim é e sempre será! Vou me mudar para uma cabana no meio da mata até morrer por lá!

— Entendo a sua angústia e o seu sofrimento, amigo, mas pense bem, não foi você mesmo que disse agradecer ao destino os seus infortúnios anteriores, pois foram esses “azares” que permitiram que você conhecesse Winona, o verdadeiro amor da sua vida?

— Era o que eu imaginava, mas essa teoria caiu por terra agora! De maneira diferente, aconteceu em relação a Winona o mesmo que já tinha ocorrido nas outras vezes, ou seja, alguma intercorrência que escapa ao meu controle sempre inviabiliza ou destrói os meus relacionamentos.

— Pode ser, amigo, mas ainda acho que não acabou…

— Como não? Você mesmo disse que Winona é muito sensível e não perdoa atitudes que ela julga racistas ou supremacistas. Ela nunca vai acreditar em mim e muito menos me perdoar.

— Vamos dar tempo ao tempo… segura a onda! Hoje você dorme aqui na minha casa.

Sem mais forças para discutir ou raciocinar, JC baixou a cabeça e seguiu a orientação do amigo. Caiu na cama e apagou na hora. Nunca mais queria acordar.

Abriu os olhos no dia seguinte sem saber bem onde estava, quando Marco Antônio entrou no quarto.

— Vamos acordar, senhor Júlio César, já é quase meio dia e tem uma pessoa lá na sala querendo falar contigo.

— Não quero falar com ninguém, Marco, mande embora, por favor!

— Não posso fazer isso, amigo!

— E por que não?

—Porque trata-se do grande amor da tua vida!

— Winona?

-Sim, ela mesma em pessoa, coração e espírito.

— Mas… por que ela está aqui?

— Vista-se e vá conferir você mesmo, amigo. Como você bem sabe, a vida requer coragem!

Dividido entre o ceticismo e a esperança, com muito esforço, JC levantou-se e pediu ao amigo:

— Por favor, diga a ela que vou tomar um banho e já vou lá. Não posso me apresentar na frente dela nesse estado deplorável… ontem, tomei algumas doses de whisky antes de dormir.

— Claro, ela vai entender perfeitamente!

Após o banho renovador, JC apresentou-se frente à Winona com outro ânimo.

— Que bom te ver, Winona! Olha, eu sei que não posso provar para você que eu não quis ser preconceituoso ontem, mas…

— Você não precisa provar nada para mim, Júlio, eu é que tenho que te pedir desculpas… me perdoe por ser tão sensível e ter interpretado mal a sua fala!

— Maravilhoso! Então você acredita em mim… mas porque mudou de ideia?

— O Marco me procurou ontem à noite e me contou sobre as tuas desventuras e infortúnios anteriores! E eu acho que sei o que acontece contigo…

Surpreendido pelas duas informações que Winoma lhe dava, JC não sabia se saía da sala para agradecer ao amigo pela interferência redentora ou se perguntava para Winoma o que ela sabia sobre a natureza das suas desventuras.

— Eu sou filha do guia espiritual da nossa comunidade originária em Dakota, aquilo que os povos originários da América latina chamam de Pajé ou xamã. Aprendi com meu pai que alguns espíritos malignos, eventualmente, podem molestar a vida de alguém previamente escolhido.

— Sério? Mas por que eu?

— Ninguém sabe com certeza, mas pode ter a ver com a força espiritual dessa pessoa. Isso incomoda esses espíritos e então eles tentam minar ou destruir a força da pessoa.

— Caramba, então eu vou ser perseguido até o fim da minha vida?

— Não, o poder dos espíritos malignos acaba quando a pessoa toma consciência sobre a interferência deles na vida dela.

— Então, quer dizer que agora isso acabou?

— Sim, agora você está livre para viver por si mesmo os mistérios que conduzem aos seus caminhos.

Suspirando, JC parecia ter tirado um peso de duzentos quilos das costas.

— E nós, quer dizer… você ainda me quer como o seu companheiro de vida?

— Claro que quero, Júlio… mas somente se você me perdoar pelo mau juízo que fiz de você!

Vibrando de felicidade, JC aproximou-se de Winona e abraçou-a bem apertado por um longo tempo. Depois, por iniciativa dela, um demorado beijo selou a reconciliação e a promessa de uma vida conjunta.

Após saciarem a saudade e a vontade mais premente de estarem juntos novamente, os dois apaixonados foram falar com Marco Antônio, abraçando demoradamente o amigo comum ao mesmo tempo.

Emocionado, Marco Antônio falou:

— Amigos, como vocês, eu também tenho uma natureza sensitiva. Assim que vi vocês juntos pela primeira vez, eu sabia que algo muito mágico tinha se completado e se unificado.

Após o demorado abraço, M. A. complementou:

— Jamais saberemos como ocorreu a conjugação de todas as forças que nos trouxeram até esse momento, mas o que importa isso?

— Sim, meu amigo, realmente não importa mais! Tudo o que importa agora é que você aceite ser o nosso padrinho de casamento, disse JC, feliz até a medula.

— Apoiadíssimo, complementou, radiante, Winona.

— Meus queridos amigos, me permitam citar novamente o grande Chico, replicou o futuro padrinho:

“Não sei como o maracatu começou…
Eu já nem lembro pronde mesmo que vou,
Mas vou até o fim!”

Fim

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