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Cyrano

O narigudo sonhador

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Desde a adolescência, Dermeval se identificava a um personagem inusitado, bem diferente dos roqueiros, jogadores de futebol e outros avatares da galera: Cyrano de Bergerac.

Aos 15 anos, ele preenchia todos os requisitos para isso. Trazia no lombo uma boa dose de romantismo, que nem Cyrano; era meio mal acabado de focinho (tinha dentes saltados, lembrava os generais japoneses nos quadrinhos americanos ambientados na Segunda Guerra Mundial), seu ídolo tinha um narigão de responsa; manejava bem as palavras, à semelhança do poeta-duelista; e gostava do fuzuê, sonhava em arranjar uma parceira de amor eterno e de cama porém, tadinho, era virgem de marré de si.

Outro requisito preenchido a contento, teve aulas de Francês no Ensino Médio e, nelas, conheceu passagens da bela peça teatral de Edmond Rostand. Chegou a incorporar, como um bordão próprio, as desafiadoras palavras finais da peça, pronunciadas por Cyrano antes de morrer, algo que ele conservaria até o fim, sem manchas: mon panache, meu brio.

O tempo passou, Dermeval fez um tratamento odontológico e corrigiu os dentões, perdeu a virgindade, namorou, cursou jornalismo, arranjou um emprego em um diário carioca, casou, descasou… Vida comum, o de sempre, ao molho. Certo dia, vasculhando um sebo do Rio de Janeiro, deu de cara com um livro coberto de poeira, intitulado La vraie histoire de Cyrano de Bergerac, a verdadeira história de Cyrano de Bergerac. Não havia assinatura de autor.

Comprou-o e, de volta para casa, lançou-se à leitura. Meio decepcionado, deparou-se com informações que já conhecia. Seu herói não era fruto da imaginação de Rostand mas existiu realmente, nasceu em Paris em 1619 e recebeu o nome de Hector Savinien de Cyrano (o Bergerac só foi incorporado em 1638). Foi soldado e notabilizou-se como duelista. Também foi poeta e romancista. Pioneiro do gênero ficção científica, escreveu os romances História Cômica dos Estados e Impérios da Lua e História Cômica dos Estados e Impérios do Sol. No primeiro, publicado em 1657, dois anos após sua morte, apresentou a primeira descrição de um mecanismo para viagens espaciais.

Impaciente, já sabedor de tudo isso, Dermeval pensou em largar o livro, quando se deparou com um subtítulo sugestivo: Le nez, o nariz. Na peça, o enorme tamanho do apêndice nasal era a fonte dos infortúnios do poeta; o que teria se passado na realidade? Prosseguiu com a leitura e deparou-se com um relato picante (ou naso-xoxotante, neologismo mais apropriado, dadas as circunstâncias).

Com seu nariz desmesurado, maior que qualquer língua, maior que qualquer bilau, Cyrano fazia a alegria das senhoras da nobreza da França (e de algumas donzelas mais saidinhas). Era só encaixar o narigão e em pouco tempo elas chegavam ao clímax. Por sorte, ele gostava do odor da coisa; senão, teria o destino da pobre águia que todos os dias devorava o fígado de Prometeu, diariamente regenerado, e que, tadinha, detestava fígado…

O autor desconhecido prosseguiu, lembrando que mucosas nasais são delicadas e vulneráveis. Informou em seguida que, certa noite, Cyrano recebeu de uma duquesa madura, mais que rodada, uma dose cavalar de uma doença sexualmente transmissível. Uma semana depois, num baile de gala, o poeta-espadachim teve um acesso incontrolável de espirros e espalhou por todos os lados a DST. Em seguida, nos palacetes, houve choros e ranger de dentes, incriminações e grossa pancadaria. Afinal, muitos atingidos e atingidas ousaram discutir a calamidade e terminaram por identificar o disseminador da quase pandemia: Cyrano de Bergerac, aquele fiodeumaégua.

A DST não impediu os maridos dodóis de armarem uma emboscada contra a pobre vítima da velha dama indigna e levarem a melhor, pela força dos números, diante do temível duelista. E assim tombou Cyrano, o corpo trespassado de lâminas que nem uma almofada de alfinetes. Com uma DST das brabas. Sem um pingo de panache.

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