Autoritarismo disfarçado
Fiscalização do Detran vira invasão domiciliar
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Há algo profundamente errado quando um órgão que deveria se limitar à regulação de trânsito passa a agir como força policial, invadindo residências com armas — ainda que não letais — para apreender adolescentes sem ordem judicial. É esse o quadro que se apresenta no Distrito Federal, e que exige reflexão, denúncia e responsabilização. O caso em questão, com imagens que Notibras omite por ser contrário a cenas de violência, aconteceu na noite de domingo, 26, no P-Sul.
Segundo relatos de pessoas que preferem o anonimato, e vídeo que circula nas redes sociais, equipes do Departamento de Trânsito do Distrito Federal, teriam invadido domicílio para apreender um adolescente, supostamente autista. Os agentes estariam munidos de armas de choque ou equipamentos similares, sem que houvesse mandado judicial ou flagrante devidamente configurado.
Tal conduta fere os princípios básicos do Estado de Direito: inviolabilidade do domicílio, respeito à autoridade judicial e proteção especial ao adolescente.
É preciso observar que o órgão de trânsito tem personalidade distinta da polícia. Sua missão é regulamentar, fiscalizar o trânsito, aplicar infrações administrativas, promover educação para o trânsito. Quando passa a agir como “força de execução penal”, faz o salto perigoso de concorrer com as atribuições da polícia judiciária ou dos organismos de proteção ao adolescente.
Esse tipo de confusão institucional dilui responsabilidades, dificulta controle e abre brecha para abusos.
No caso do P-Sul, conforme denunciado, não se trata apenas de um atropelo à legalidade em abstrato. Esse comportamento se insere num cenário de relações políticas/institucionais suspeitas.
O deputado distrital Eduardo Pedrosa (União Brasil) acumula forte protagonismo junto ao Detran — por meio de emendas orçamentárias, reestruturações de carreira, gratificações aos servidores.
Quando a direção de um órgão é fortemente vinculada ao Legislativo, e agentes dessa política passam a atuar com “poder policial”, o risco de ruptura institucional e de práticas arbitrárias cresce.
Diversas normas são claras quanto à necessidade de autorização judicial para apreensão ou busca domiciliar, salvo situações de flagrante delito ou risco iminente e circunstanciado. Invadir residência de adolescente sem ordem judicial efetiva é violar garantias fundamentais.
É imperativo lembrar que o adolescente — ainda que infrator ou suspeito — tem direitos especiais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e outras leis protetivas.
No entendimento de Notibras, diante dessa prática, exige-se imediatamente uma investigação por parte de organismo independente (Ministério Público, corregedoria) sobre eventual cada ato de invasão, armas usadas, mandados ou ausência deles.
A transparência deve ser total. Com base na Lei de Acesso à Informação, o Detran estará recebendo nos próximos dias alguns questionamentos, a exemplo de quantas operações desse tipo ocorreram, quais foram os fundamentos, autorizações judiciais, quais armas foram utilizadas, quais adolescentes foram apreendidos, quais foram as consequências.
Também é necessária uma auditoria externa sobre a estrutura de comando e vínculo político-parlamentar entre o órgão e parlamentares que o patrocinam, além de proteção das famílias e adolescentes atingidos, com direito à reparação, se for o caso, e medidas urgentes para cessar a prática.
Esse episódio, mais do que casos isolados, trata-se de um alerta: se um órgão administrativo invade residências com armas sob justificativa de “fiscalização”, estamos diante de uma civilização de exceção. E o discurso de “segurança” ou “ordem” não pode servir de justificativa para atropelos às liberdades.
A defesa do trânsito organizado não pode significar a eclosão de um aparato autocrático, no qual o cidadão vira alvo de um órgão que, supostamente, deveria protegê-lo.
No Distrito Federal, a combinação de faculdades de poder — autoridade administrativa + coação executiva + proximidade política — gera um risco institucional elevado. Se o Detran, em vez de simplesmente autuar veículos, começa a agir como policial para invadir casas, apreender adolescentes sem ordem judicial, usar armas de choque, sem transparência nem controle, então a cidadania, a legalidade e a proteção das garantias ficam seriamente feridas.
É chegada a hora de dizer basta. As famílias que foram invadidas merecem respostas. O Estado deve responder. E a prática deve ser revertida imediatamente.
Que essa denúncia não fique em retórica, mas se transforme em auditoria, responsabilização, reforma institucional. E que o papel do órgão volte a ser o que deveria ser, de regulação, não opressão.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
