Curta nossa página


O coroneta

Olímpio era chamado de coronel, mas, a rigor, seria quando muito major

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Em um dos livros da monumental série de ficção histórica centralizada nos personagens Jack Aubrey, da Royal Navy, e no médico, naturalista e agente secreto Stephen Maturin, o romancista inglês Patrick O’ Brian cria um concurso literário entre os oficiais de um navio. Um dos oficiais recita um poema e é muito aplaudido.

Outro oficial se aproxima dele e diz, hesitante:

– Desculpe, senhor, creio que esse poema é de autoria de Coleridge…

– Sem dúvida. Um dos meus poetas favoritos!

– Mas o concurso é de poemas escritos pelos participantes!

– Um poema meu? Não sou poeta! – retrucou, ofendido, o oficial.

Foi essa a inspiração para o conto que vocês vão ler.

A coisa se passou em Cafundó do Judas, cidadezinha esquecida do interiorzão brasileiro, nos anos 1920. Um latifundiário local, o coronel Olímpio, tinha pretensões políticas, queria se eleger deputado estadual e sair daquela desgraceira. Ele era chamado de coronel, mas, a rigor, seria quando muito major: havia outros coronéis na região bem mais poderosos e influentes, todos deputados na capital distante, todos gozando de seu conforto…

A eleição se aproximava e, durante uma reunião de campanha, um assessor observou:

-Coronel Olímpio, vai ser difícil. O senhor tem menos terras, menos agregados e jagunços que outros latifundiários candidatos. Então será quase impossível se eleger segundo o esquemão tradicional, de compra de votos, queima de urnas, falsificação de atas eleitorais, porrada nos comícios dos adversários…

O aspone tomou fôlego e prosseguiu:

– Difícil, repito, mas não impossível. Além de garantir o voto de seus peões, sugiro que o senhor explore um filão que seus adversários ignoram ou desprezam: as camadas urbanas de Cafundó do Judas, as elites locais, que tenho a honra de integrar.

O coronel explodiu.

– Elites locais? Essa disgrama não tem nada, só o padre, o juiz, dois ou três advogados, dois ou três médicos, um punhado de meganhas, outro tanto de professoras primárias, uns 30 comerciantes, uns 50 funcionários da prefeitura… Tudo somado, não são mais que 150 pessoas…

– Sempre esquecidas pelos coronéis enviados ao Legislativo – cortou o assessor. – Se o senhor se aproximar dessas elites, pode obter no mínimo uns 120 votos e, com os da peãozada, tem boas chances de se eleger.

O coronel Olímpio coçou q cabeça, afagou a barba, mas terminou por embarcar no esquema.

Encarregado de conduzir o namoro coronel-elites, o assessor inscreveu o senhor Olímpio Bastos (o nome da fera, raramente usado) em um concurso de poesias. O coronel não se importou muito, gostava de ler versos, de ouvir repentistas, essas coisas. Chegou a noite do concurso, chegou a vez do coronel Olímpio exibir seu talento. Ele mandou ver:

“Última flor do Lácio, inculta e bela…”

E foi em frente, com um sotaque cafundódojudasense fortíssimo, gaguejando nas estrofes, pronunciando mal as palavras. “Inculta” virou “incurta”, foi pior em “tuba de alto clangor”, transformada em “tuba de arto crangor”. No final, ouviram-se aplausos hesitantes.

Meio sem jeito, o assessor aproximou-se dele.

– Foi muito bom, coronel, mas esse soneto é de Olavo Bilac…

– Claro que é de Bilac! Meu poeta preferido, um poema supimpa! Rimas lindas, nada desses versinhos de pé quebrado que um bando de modernistas fiosdeumaégua estão escrevendo no Rio e em São Paulo.

– Mas coronel, o concurso é de poesias escritas pelos participantes…

O coronel coçou a cabeça, afagou a barba, pensou, “Pra quem tá no inferno, Ave Maria é lenha” e anunciou ao respeitável público, todo pimpão:

– Senhores e senhoras, confrades de letras, recitei um soneto do imortal Olavo Bilac. Recitarei agora um poema de minha autoria, Dioneia, a rainha do cabaré.

Era uma homenagem do adolescente Olímpio à puta mais rodada da região, aposentada faz tempinho, que o iniciara nos prazeres do vucovuco. Poema funcionalista, descrevia cada parte da anatomia da diva, seu uso na cama e ia descendo, da cabeça aos pés. Mencionava a boca gulosa, a língua de ouro, os seios generosos, “que se ofereciam a uma espanhola”, os mamilos durinhos “que imploravam por lambidas”, o ventre curvo, “ávido de mordidas…”

Quando o coronel louvou o umbigo de Dioneia e se preparava para seguir em frente, impávido, as damas presentes tiveram faniquitos (ou fingiram que). Já os senhores ficaram indignados (ou fingiram que; alguns enxugaram lágrimas furtivas, fruto da saudade de Dioneia, desvirginadora de tantos deles). O resultado foi que o coronel teve de interromper o périplo pelo corpo da atleta e deixou o palco sob uma chuva de vaias e palavrões.

No dia seguinte, toda a população de Cafundó do Judas comentava as desventuras do coroneta, o coronel-poeta. O apelido se alastrou como fogo em pasto seco, o “é” de poeta logo deu lugar ao “ê” de perneta, coronêta o coronel se tornou. E assim permaneceu. Mas transformações linguísticas ocorrem o tempo todo, e coronêta passou a ser pronunciado corneta. Ninguém achava que era uma referência ao instrumento musical. Para azar do coronel, era um termo regional para marido traído.

Na eleição, o coroneta-corneta levou a maior surra de sua vida, abandonado pelos peões e agregados, até pelos que mais dependiam dele para sobreviver. Quando os jagunços iam castigar os traidores, ouviam como resposta:

– Podem me bater, mas não voto em corno!

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.