Menina má
Ela aparentava uns 8 ou 9 anos, mas seus olhos revelavam sua real condição
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Ela aparentava uns 8 ou 9 anos, mas seus olhos revelavam sua real condição. Um olhar frio, sempre à espreita, dissimulado, de alguém consciente de que esse é o único ponto fraco em sua armadura e trata de controlá-lo o tempo todo. Olhos velhos, de quem já viveu, viu e fez muita coisa.
No colégio, as demais crianças notaram que havia algo estranho com a menina. Falavam o mínimo com ela durante as aulas e a isolavam na hora do recreio. E nunca, nunca a convidavam para festinhas de aniversário. As mães insistiam, perguntavam por que ela não fora convidada. As respostas eram sempre nesta linha:
– Ah, mãe, não gosto dela, é meio esquisita…
Ela não dava a mínima, nutria um solene desprezo pelos seres que designava como “mortais”, fossem eles crianças, adultos ou idosos. O curioso é que ela também era mortal. Ou tinha sido.
Tudo começara fazia uns 100 anos. Ela era, na ocasião, uma órfã pobre que vagava pelas ruas. Certa manhã, acordou banhada em sangue em um quarto desconhecido, ao lado do cadáver de um homem cuja carótida fora perfurada por um longo estilete de aço. Apavorada, pensou em lavar-se e fugir dali o mais rápido possível, mas ouviu uma voz poderosa, vinda do nada, que lhe disse:
– Assim matarás, com aquele estilete. Enquanto realizares os rituais de sangue, um a cada seis meses, não envelhecerás um só dia. E receberás muito dinheiro, aquela bolsa perto da porta está cheia de notas.
A voz calou-se, como se alguém pensasse no que dizer em seguida, e então prosseguiu:
– É importante que arranjes uma senhora de confiança que a matricule na escola, alugue um lugar para vocês morarem, cuide do seu dinheiro, faça todas as coisas que uma criança não pode fazer por si mesma, sem despertar uma atenção indesejada.
Deu trabalho, mas ela conseguiu encontrar alguém para ser sua “vovozinha”. Era uma idosa sem filhos, nada inteligente mas com imenso talento para a submissão sem perguntas; por um bom salário, a velha aceitou, além de cuidar da casa, aparecer, quando necessário, como responsável legal pela menina.
Esta descobriu, por experiência própria, que o prazo máximo de permanência segura em um colégio – em uma cidade – era de quatro anos, quer dizer, de aparentes 9 a 12 anos. Mais que isso, começavam a surgir comentários sobre seu ingresso tardio na puberdade, que podiam levar a perigosas investigações. Foi o que ocorrera em uma escola bem aprazível, em que se deixou ficar por quase cinco anos. Por sorte, ouviu uma professora comentar que iria encaminhá-la a um médico, para ver se o atraso na chegada da menstruação era sintoma de algum distúrbio. Preocupada, a menina (?) tratou de mudar de cidade às pressas, com a vovozinha a tiracolo, fixando-se em um estado bem distante. Deu trabalho arranjar documentos falsos de conclusão do ano letivo, mas no final tudo correu bem.
Outra dificuldade era a morte inevitável das vovozinhas, em 100 anos já enterrara quase vinte. Ela aprendeu a ter sempre uma idosa sobressalente, cuja primeira atribuição, ao ser ativada, era providenciar o enterro da falecida. Um enterro simples, mas digno.
Uma descoberta fundamental foi a de que gostava de matar, e o fazia com perícia. Assim, os rituais de sangue tornaram-se a parte mais aguardada de sua vida. Além disso, predadora habilidosa, não demorou em identificar suas presas mais vulneráveis: as feras em forma de gente que ansiavam por abusar de menores impúberes.
A tática de caça variava pouco. Decorridos pouco mais de cinco meses do último ritual de sangue, ela passava a frequentar, com um vestido bem curto, parques públicos distantes de sua residência. Passava muito tempo no balanço, aparentemente sem perceber a exibição de suas coxas e, ocasionalmente, de sua calcinha rendada.
Os lobos, esses, percebiam, e vinham em massa, quase babando, quase dando uivos de luxúria. Ela passou a enquadrá-los em duas categorias. Havia os tímidos, que não falavam uma palavra, limitando-se a mirá-la com um olhar pidão. Nunca souberam, mas foram salvos por sua timidez.
E havia os atrevidos, que chegavam junto, sorriam, diziam que ela parecia muito com sua filha, sobrinha ou neta, ofereciam-lhe sorvete, guloseimas, sugeriam levá-la até em casa, para ela comprovar a semelhança espantosa com sua filha, sobrinha ou neta… Ela sorria, saboreava o sorvete ou guloseima e dizia que não, tinha de ir pra casa, mas no próximo fim de semana, quem sabe?
Na vez seguinte, eles estavam mais ansiosos, os presentes se multiplicavam, a urgência em suas propostas era mais nítida. Ela adiava a resposta o mais possível, sentia prazer em torturá-los, mas então dava o bote:
– Olha, paizinho (ou titio, ou vovô, conforme o caso), esta semana fui uma menina muito má. O paizinho (ou titio, ou vovô) quer me levar pra um lugar discreto e me castigar? – e dirigia-lhe um olhar sedutor, aperfeiçoado ao longo de décadas.
Sem acreditar na boa sorte, ele a conduzia a um carro e seguiam para o local do abate. E aí avançava, o olhar vidrado. Mas o estilete era mais rápido, afinal, a predadora tinha muitas décadas de prática. Depois ela lavava a roupa – sempre respingava sangue da carótida cortada –, tomava um banho rápido e ia pra casa, onde a esperava uma sacola cheia de dinheiro, trazida não se sabe de onde nem por quem.
Diga-se que, embora continuasse a desprezar os “mortais”, ela se via como uma protetora ou, antes, uma vingadora das pré-adolescentes de 8 a 12 anos. Muitas delas foram e são vítimas dos abusadores de menores; mas algumas meninas más – ou pelo menos uma delas, a própria – estão muito acima das feras de duas patas, na cadeia alimentar.