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Velhinhos na luta

Não se sentia tão emocionado desde os gigantescos comícios das Diretas

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Foi um velho amigo, recém-encontrado via Facebook, quem sugeriu:

– E se a gente fosse junto às manifestações contra o presidente? Como um grupo com identidade própria?

Jonas adorou a ideia. Informou que estava nessa, sugeriu um nome pro coletivo, Velhinhos na luta, e desenhou – adorava desenhar, era como passava suas muitas horas vagas – um casal de idosos dando enérgicas bengaladas numa figura acovardada e encolhida, que era a cara do Bozo. O nome e o desenho para camisetas foram rejeitados, considerados brincalhões demais para uma intervenção política consequente. Jonas não ligou, estava acostumado a ser, por sua irreverência, uma espécie de ovelha negra da esquerda. O fundamental é que pertencia a essa corrente, reconhecia-se nela, era reconhecido por seus integrantes – e todos, quer dizer, os que ainda estavam vivos, estavam de volta à ativa.

A manifestação começaria na avenida Paulista. O grupo de velhinhos tinha um ponto de encontro, mas Jonas chegou mais cedo e percorreu lentamente toda a extensão do evento. Não se sentia tão emocionado desde os gigantescos comícios das Diretas. Lembrou-se do palanque, com Tancredo, Brizola, Ulisses Guimarães e um jovem dirigente do ainda mais jovem Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio da Silva, o Lula. ”É disso que precisamos hoje”, pensou. “Unir todos os porta-vozes da esquerda, do centro e da direita não golpista contra a besta fera do Planalto”.

Caminhando pela Paulista, sentiu-se um cúmplice dos jovens estudantes universitários e secundaristas que, além de entoaram palavras de ordem pelo impeachment de Bozo, se azaravam e se pegavam sem o menor constrangimento. Olhou com uma ponta de inveja a confiança meio arrogante dessas moças e rapazes, que acabavam de descobrir a política e o sexo. “Há 50 anos era igualzinho”, pensou com saudade. “Os neurônios se mobilizavam, os hormônios também. Uma delícia!”

Finalmente Jonas chegou ao ponto de encontro dos Velhinhos na luta (o nome do grupo não era esse, mas e daí? Pra ele era). Viu umas duas dezenas de idosos detonadaços – alguns velhinhos de bengala, gordos, carecas e com os raros cabelos e barbas brancas; algumas velhinhas sem formas definidas, gordas ou demasiado magras e com os seios caídos. “Deuses, devo estar tão mal quanto”, pensou com amargura.

De repente, algo se modificou. Ao olhar para aqueles velhinhos que começava a reconhecer individualmente, ele os visualizou como eram há meio século – rapazes e moças de olhos ardentes, na força dos 20 anos, capazes de inflamar, com suas palavras, uma assembleia – e de seduzir, com seus sorrisos e corpos durinhos, meninos e meninas. As imagens do antes e do agora ficavam se alternando a seus olhos, e Jonas imaginou que cada um também via os companheiros e companheiras mudarem, suas expressões assombradas sugeriam isso. “Deve ser porque conservamos vivos os sonhos e projetos da juventude”, pensou. “Junto a eles sobreviveu a imagem de quem os sonhou, os projetou”.

De súbito, avistou Lola. Era uma velhinha simpática, de feições menos castigadas pelo tempo. E, quando aparecia a imagem do antes, ele via a jovem de cabelos negros lisos, corpo perfeito e sorriso zombeteiro e insinuante, que ele tanto havia amado aos 20 anos. Era uma das mulheres mais atraentes da faculdade, e Jonas, por especial favor das divindades, havia transado com ela diversas vezes, antes que a vida os separasse.

Aproximou-se, hesitante, e perguntou:

– Lola?

– Jonas, querido!

– Logo vi que era você – disse ele, e confidenciou. – E a imagem do antes aparece para confirmar. Mas reconheceria você mesmo sem ela.

– Estranha essa alternância de imagens – observou Lola. – É como se o tempo voltasse, ou a gente voltasse no tempo, sei lá… – E mudando de assunto: – Você também não mudou muito, para um senhor de mais de 70 anos está um gato – e deu a risada sensual que o encantava.

A essa altura, todos haviam aceito, mesmo sem entender, o fenômeno da alternância das imagens. Estavam calmos e decididos, a revolução os aguardava, ou alguma frase altissonante desse naipe. A manifestação transformou-se em passeata, que começou a descer a rua da Consolação. Lola e Jonas foram lado a lado; pareceu natural, e mesmo inevitável, suas mãos se entrelaçarem.

A passeata terminaria na praça Roosevelt. Quando faltavam uns cinco quarteirões, Jonas falou a Lola – baixinho, que ambos tinham uma imagem revolucionária a manter:

– Lola querida, moro a um quarteirão daqui. E confesso que minhas pernas estão me matando. Que tal a gente sair agora e dar um pulo lá em casa? Meus joelhos cansados agradeceriam penhorados – e riu com um olhar atrevido, como costumava fazer para levá-la pra cama (quase sempre funcionava).

– Vamos embora, querido – disse a velhinha, apertando mais forte a mão dele.

No apartamento, Jonas abriu uma cerveja e dois copos. Brindaram e tomaram um bom gole, ambos sentados no sofá, descansando as pernas. O silêncio era pontilhado de olhares eloquentes. De súbito, ele fez uma pergunta inusitada.

– Lola, alguém já a chamou de 68?

– Quantas vezes! Primos, cunhados, amigos – que se tornaram ex-amigos –, sempre num tom de zombaria, pra indicar que eu parei no tempo, não me tornei uma senhora séria e respeitável, não descartei os sonhos de juventude e a luta por uma sociedade mais justa e menos desigual…

– Comigo foi a mesma coisa – admitiu Jonas. – E talvez por isso, conseguimos, hoje, o prodígio de nos ver como estamos agora e como éramos antes, duvido que algum conservador cascudo conseguisse fazer isso – e armou o bote.

– Os números têm uma certa lógica, querida. Paramos, os dois, em 68. Vamos pro número seguinte?

– Só se for agora! – disse a velhinha, começando a despir-se.

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