Máscaras
Ele estava envergonhado por estar quase nu
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Todos usavam máscaras no Ninho. Ele – o protagonista deste conto – havia criado três.
Uma delas tinha um rosto bem branco, os lábios puxados para baixo, e uma lágrima solitária. Ele a usava raramente, quando estava triste; em outra, a boca se abria num sorriso zombeteiro, desafiador e convidativo, era colocada quando Ele estava sem um Ele e/ou uma Ela, indicava sua disponibilidade. Mas as duas estavam acumulando poeira, Ele estava plenamente feliz com seu Ele e sua Ela, os três se davam maravilhosamente bem na cama e se ajudavam em todos os aspectos.
(Por uma ironia dos deuses do espaço-tempo, essas duas máscaras influenciaram – poderiam ter influenciado – poderiam ter sido influenciadas por – máscaras de Pierrô e Arlequim, da Commedia dell’Arte.)
A terceira máscara, a mais usada, era o do seu irmão-de-poder, um uivador. Eles haviam estabelecido contato telepático desde a infância, cresceram juntos e permaneceram sempre ligados. Até o dia, triste, mas esperado, em que ele o procurou e transmitiu:
“Meu irmão-de-poder, tive uma vida boa. Cresci livre no meu bando, encontrei ali minha Ela, vi meus filhotes crescerem, lutei com outros uivadores pela chefia, liderei meu bando. Agora já não corro tão rápido, minhas forças estão diminuindo, é hora de abrir caminho para meu irmão viajar para longe daqui”.
Ele colocou a máscara com a lágrima, mas logo a tirou, sabia que era inevitável, precisava ser feito.
O irmão-de-poder indicou o ponto exato em que devia ser abatido, para que a passagem ocorresse sem dor. Ele pegou o recipiente em forma de uivador, destinado a guardar o sangue, e o sacrifício foi feito. Chorou durante três dias a ruptura do laço; no quarto dia, pegou um pouco do sangue armazenado, cortou o braço, misturou seu próprio sangue com o do uivador e besuntou uma vela grande com a mistura. Enquanto ela queimasse, bastava desejar ver outros lugares para ser transportado pelo espaço-tempo; quando a vela apagasse, Ele, onde quer que estivesse, voltaria àquele aposento. Era assim que os Eles e Elas do Ninho viajavam, sempre para um lugar (um mundo) onde pudessem respirar, comer e beber sem problemas. Nunca sabiam para onde seriam transportados, era uma das regras do jogo e um de seus atrativos.
Naquele dia, Ele preparou-se para mais uma aventura. Enrolou-se num pano – já tivera problemas com a nudez em alguns lugares –, pegou um pouco de sangue no recipiente, onde era mantido líquido na temperatura corporal, misturou com o seu, untou uma vela, acendeu-a, concentrou-se e partiu.
Materializou-se em um lugar feio, sem árvores, perto de uma multidão. Os Eles avançaram em sua direção logo que o viram.
– Quem é esse maluco? Surgiu do nada!
– Tá quase nu, deve ser um tarado!
– E tá com uma máscara de lobo!
– Vamos dar um pau nele!
Ele não compreendia as palavras, mas recebia telepaticamente os pensamentos. Sabiam que eram agressivos e que sua sobrevivência estava em risco. Levantou ambas as mãos num gesto universal de paz. Não adiantou. Então removeu a máscara, para mostrar que suas feições se assemelhavam às dos Eles do lugar.
Foi pior. Para começar, a cor não era a mesma, seu rosto era branquíssimo, talvez mais que a máscara de tristeza. Mais ainda, Ele era a beleza masculina personificada. Todos os Eles e Elas do Ninho eram assim, de traços perfeitos.
(Por uma ironia dos deuses do espaço-tempo, os traços desses Eles e Elas influenciaram – poderiam ter influenciado – poderiam ter sido influenciados por – as representações dos deuses, deusas e ninfas da Antiga Grécia.)
Os Eles locais não se comoveram com tamanha perfeição. Ao contrário, sentindo-se inferiorizados e inconscientemente atraídos, avançaram irradiando pensamentos de morte contra o ser que os perturbava. Ele fugiu a toda velocidade, deixando para trás os perseguidores.
Horas depois, escondido em uma gruta, Ele rememorou tudo o que havia ocorrido. A hostilidade dos locais não o abalou muito, mas a mescla de sentimentos pouco usuais que experimentara, sim.
A começar pela vergonha. Ele ficara envergonhado por estar quase nu, sabia que em muitos lugares a nudez não era bem aceita. Mas a vergonha-culpa era predominante: ele não devia ter removido a máscara, foi como se tivesse traído o [Lobo] irmão-de-poder. Esse termo, Lobo, e a ideia de fera sedenta de sangue que o acompanhava, o perturbavam mais do tudo. Até porque Ele poderia ter se transformado no [Lobo?] companheiro de uma vida inteira, melhor ainda, em um uivador no auge de sua força, e investido contra os perseguidores. Mas não, removera a máscara, como que envergonhado de sua ligação com [a fera sanguinária? Lobo?] o irmão-de-poder. Como se Ele estivesse errado, e não os Eles brutais e preconceituosos do lugar. Foi com alívio que, três dias depois, trocou a caverna onde se abrigara pelo lugar em que vivia, no Ninho.
Seu Ele e sua Ela chegaram horas depois. Beijaram-no e tentaram arrastá-lo para a cama, porém Ele resistiu. Usava a máscara da lágrima e sentou-se em silêncio. Depois, removeu-a devagar do rosto e narrou, telepaticamente, tudo que se passara e seus confusos sentimentos diante do ocorrido.
Seu Ele tirou a máscara de seu irmão-de-poder (um miador) e beijou-o nos lábios. Foi a sua declaração de solidariedade incondicional. A Ela, porém, sacudiu desaprovadoramente a cabeça e foi embora. Os dois sabiam que não tornariam a vê-la.
Desde esse dia, o Ele protagonista desta história tem uma existência empobrecida. Conserva os laços com o seu Ele, mas ambos sabem/sentem que falta alguém, uma Ela para equilibrar as energias da relação. Poderia afixar no rosto a máscara de sorriso zombeteiro e tentar um jogo de sedução, provavelmente bem-sucedido, mas não ousa. A verdade é não usa mais máscaras, nem a da lágrima solitária, nem a do sorriso convidativo, e muito menos a do seu irmão-de-poder [Lobo? Fera sedenta de sangue?] E nunca mais misturou seu sangue com o dele, para se aventurar pelo espaço-tempo.