O sem-noção e o diplomata
Sérgio Moliterno não era tão mole assim, muito menos eterno
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Este texto vai para o meu amigo Sérgio Moliterno. Que não era tão mole assim. E muito menos eterno. Embora fosse quase sempre terno.
Nós nos conhecemos no bom e velho Liceu Nilo Peçanha, em Niterói. Sérgio era o ex-diretor de LNP, a revista do Liceu, e eu fazia parte da equipe editorial subsequente a sua gestão. Sérgio e o novo editor tinham projetos de longo alcance para a revista, enquanto eu só queria um espaço para publicar meus poemas (é, aos 14-15 anos eu escrevia poesias). Resultado: enquanto eles planejavam lançar um jornal ligado à revista, eu e um amigo lançamos antes um jornalzinho, O temporal. Diga-se, em minha defesa, que eu fora mantido à margem do projeto; mas simplesmente não me passou pela cabeça consultá-los, comunicar meu projeto, ver se poderia aparecer ligado a LNP, nada disso. O temporal durou uns cinco meses, o jornal de LNP morreu antes de nascer.
Esse episódio ilustra aspectos que se repetiram ao longo de toda a nossa convivência. Eu era o sem-noção, que avançava sem olhar para os lados, feito um javali; Sérgio, o diplomata (ele chegou a trabalhar no Itamaraty), sempre gentil, por vezes hesitante – não por acaso, ele citava sempre o verso de Rimbaud, “Par delicatesse j’ai perdu ma vie” (Perdi minha vida por delicadeza).
Mas ele tinha o dom de tirar o melhor de mim, e ouso dizer que era recíproco. Na pracinha de Icaraí onde, já jovens, batíamos ponto, certa vez ele me dirigiu um brinde:
– Cheers!
Por algum motivo, eu estava triste. Respondi de bate-pronto:
– Tears (lágrimas).
Esse jogo de palavras rimado foi incorporado ao nosso cotidiano e usado, vezes sem conta, por nós dois.
O tempo passou, vim para São Paulo após uma prisão política, Sérgio chegou pouco tempo depois. Nosso porto de arribação foi a boa e velha Abril Cultural; trabalhamos juntos em várias publicações, ele como redator, eu como editor. A personalidade cativante de meu amigo conquistou multidões, que se deliciavam com suas frases (do tipo “Tô que nem burro de moenda, rodando e peidando); já eu sou bem mais espinhoso. Nessa fase, ele me fez um dos maiores elogios que recebi: eu o teria ensinado “não a escrever, mas a limpar um texto”, isto é, copidescá-lo até deixá-lo publicável.
E então houve o episódio Kadu Moliterno. Houve mil piadinhas – o atleta era mais jovem que nós –, de modo que brincavam que era nosso rebento. Pano rápido sobre essa desgraceira.
Éramos, na ocasião, melhores amigos. Conversávamos o tempo todo, bebíamos adoidado e jogávamos xadrez. Foi diante do tabuleiro que percebi que o exterior de diplomata gentil escondia uma fera. Na maioria das vezes, minha agressividade javalinesca me dava a vitória, mas por vezes Sérgio acordava com o ovo virado e aí, sai de baixo, eu era simplesmente esmagado.
E então houve a estadia na Europa. Quase quatro anos. Ao voltar, passei na Cultural para descolar frilas e rever os amigos, a começar por Sérgio. No final do expediente, sugeri que fôssemos a um barzinho para atualizar o papo. Ele, porém, me disse que iria pra USP, onde estava cursando alguma coisa (não lembro o quê, minha memória é uma lama). Entendi o recado, continuámos amigos, nossa cumplicidade era grande demais para outra coisa, mas a fila andou, não éramos mais best friends.
Tears.
Ainda assim, reavivamos nossa amizade. Foi a fase do pôquer na redação, no qual a cortesia do diplomata era descartada e o animal feroz empunhava as cartas. Mas então fui demitido da Abril Cultural e, meses depois, o mesmo aconteceu a Sérgio. Parti pros frilas, e soube que ele estava montando uma empresa com alguns amigos. Todo pimpão, fiquei à espera do convite para participar.
O convite nunca veio.
Se eu tivesse um mínimo de noção, teria percebido que meu distanciamento do sogro de Sérgio – Ari Coelho, que havia levado, a mim e a ele, para a Cultural – dificultava ou impossibilitava o convite. Ou seja, eu teria de reconquistar a estima do patriarca, para ter alguma chance na empresa em gestação. Nem tentei. A partir de 1980, nunca mais fui à casa de Sérgio; à de Ari, nem pensar.
E então veio o câncer, que levou meu amigo embora. E outro (imagino que tenha sido câncer, até hoje não sei) que, meses depois, levou sua mulher, Heloísa, minha amiga desde o Liceu. Não sei em que ano os dois morreram, havia perdido totalmente o contato.
Sei que até hoje, ocasionalmente, sonho com ele, rio de suas frases espirituosas, ele ri das minhas. E morro de saudades de um amigo que, contrariando sua citação habitual, não perdeu a vida por delicadeza.