Projeto de Lei Antifacção
Flagrante traço racista do discurso da extrema direita
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Em meio às atenções políticas voltadas à COP 30, em Belém, tramita no congresso nacional, nesse mês de novembro, o assim chamado Projeto Antifacção. Trata-se de um Projeto de Lei (PL) proposto pelo governo federal dirigido ao objetivo de endurecimento das políticas de combate ao crime organizado. Foi desengavetado à toque de caixa diante do massacre nos complexos do Alemão e Penha, no Rio de Janeiro, em 28 de outubro, e de suas repercussões. Nessa ocasião, conforme divulgado de forma oficial, 2500 policiais (civis e militares) fizeram uma operação securitária alegadamente contra membros do Comando Vermelho, que resultou na morte de 121 pessoas. Ficaria marcada a imagem do enfileiramento de dezenas corpos na rua.
O que se seguiu ao massacre foi a disputa política pela condução do discurso da segurança, protagonizado, de um lado, pelo Governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, responsável direto pela operação, e, de outro lado, pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, e seus representantes de momento, em especial o Ministro da Justiça, Ricardo Levandowski. Como resultante desse embate, uma nova emergência do termo terrorismo viria à tona, ora evocado por Cláudio Castro e demais membros da direita brasileira, como o Deputado Federal Guilherme Derrite (relator do projeto), para sugerir correlação do Comando Vermelho com atividades terroristas. Diga-se, uma ação que reverberou discursos do presidente estadunidense Donald Trump, atualmente engajado em estratégias de política externa de vinculação de grupos narcotraficantes ao terrorismo, sobretudo na América Latina.
Embora notável as interposições contrárias a essa vinculação, seja no debate político, seja na imprensa, que inclusive parece ter vencido temporariamente a disputa pela veridicção ao afastá-lo do objetivo de “combate ao terrorismo”, é interessante notar dois movimentos. Primeiro, como essa simples proposição mostra que o uso do termo terrorismo é circunstancial e responde a correlações de força que estão em disputa pela produção da verdade no campo da segurança. Nenhuma novidade: a literatura acadêmica de Ciência Política e Relações Internacionais tem vasta produção nesse sentido. E, segundo, como essa proposição cria uma baliza política que constrange o aprofundamento e complexificação dirigidas ao objetivo de contrariar o discurso da segurança. Isto é, dirigido ao objetivo, por exemplo, de ao menos discutir a problemática do proibicionismos às drogas, e, com isso, de também colocar a evidência de como ela é produtora dos massacres, pois mantém plenamente ativa e operante a indústria da segurança.
Não é preciso muita análise política para entendermos a impossibilidade atual, diante da legislatura federal eleita em 2022, de qualquer avanço nesse sentido no âmbito da política institucional. Porém, é no mínimo constrangedor verificar como se esvaiu no debate público, mesmo entre representantes da esquerda brasileira, qualquer intenção discursiva mais dissonante sobre segurança. Parece haver um medo constante pairando no ar sobre os efeitos que tal “radicalismo” poderia produzir no âmbito eleitoral. E aqui é notável que tal medo não apenas se impõe sobre os políticos profissionais do campo da esquerda, mas também seus representantes na academia, na imprensa, nas artes, etc.
Assim, não se ouve sequer falar de “legalização da maconha”, como em outros tempos. Num plano geral, o máximo que se verifica quando um novo massacre ocorre é a reivindicação dos direitos humanos – e sem qualquer questionamento à sua proveniência liberal –, ou a exigência de conformidade das operações policiais aos padrões de legalidade, algo que, historicamente no Brasil, não é nada usual. Não se aprofunda o debate ao tensionar questões que exponham como a proibição ao uso de determinadas drogas – tema absolutamente central da segurança pública no Brasil –, é aquilo que destrava e regulariza um mercado bilionário da segurança; e, claro, sua violência intrínseca. Mercado esse que, acoplado ao mercado dos ilegalismos das drogas, por consequência quase obvia, vislumbra cifras ainda mais altas se suas ações um dia forem expandidas para o combate ao “terrorismo” de grupos narcotraficantes.
Se sabemos que o campo da linguagem é atravessando pela política, e talvez seja ele o primeiro espaço em que se possa criar dissenso, nesse debate sobre a segurança e os demais desafios diante do ressurgimento da extrema-direita aqui e no mundo, é fundamental que se ocupe da fala como instrumento da política. Uma tática que não abandona discursos radicais é o primeiro passo para que não se regularize as conciliações para um mal menor que tanto vemos ocorrer na política brasileira.
Só assim podemos partir para um embate que se recusa a ver a normalização dos massacres como algo próprio de nosso cotidiano nas grandes cidades. E mais: só assim podemos ir além ao expor os moralismos que foram fixados no discurso da segurança e que reciclam a nossa marca maior, isto é, o flagrante traço racista que, de Canudos aos Complexos do Alemão e da Penha, está sempre presente nas chacinas que fundaram – e refundam frequentemente – o Brasil.
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Prof. Dr. João Duarte é Professor e Pesquisador em Relações Internacionais.