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Ensinamentos de vovó

Entre Rodolfo Valentino e Cláudio Corrêa e Castro

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Aprendi algumas coisas com vovó, mesmo que na surdina, quando todos imaginavam que nós, então crianças, estávamos imersas no mundo de Morfeu. Não que fosse curiosa ao extremo, pelo menos não mais do que a maior parte dos seres viventes, cujos ouvidos costumam se erguer a qualquer menção de segredos. Ademais, a insônia sempre me acompanhou, como se fosse a bateria do Salgueiro em plena Sapucaí.

Estava com uns sete, oito anos, não mais que isso. Ouvi vozes conhecidas e me dirigi a passos de felino até me esgueirar atrás da porta da cozinha. Minha avó e as três filhas, entre as quais mamãe, que, já naquele tempo, parecia desanimada com o casamento. Não que meu pai fosse um homem de todo imprestável. Era provedor da família e, nem por isso, se considerava o rei da casa. Sem contar que era ainda um tipo bonitão. Quer dizer, em nada lembrava um galã de novela, mas possuía lá seus atrativos, como a gargalhada gostosa e os belos olhos castanhos, cujos cílios quase faziam um looping.

Lembro-me de mamãe me falar, anos mais tarde, que papai a havia conquistado pelo cuidado e o olhar. Talvez seja esse o motivo de eu ainda não ter aceitado firmar compromisso com o Gustavo, cujo azul dos olhos podem encantar muitas mulheres. Digo que são frios que nem gelo. Até bonito de se ver, mas sem qualquer poder de aquecer meu coração.

Pois lá me encontrava, quase uma lagartixa na parede, quando vovó pareceu entender o que estava em jogo no relacionamento da filha do meio com o genro favorito.

— Maria Lúcia, sei o que é isso.

— O quê, mamãe?

— Homens feitos pra casar são tão respeitáveis quanto desinteressantes.

Desinteressante? Era disso que minha avó, que sempre me fora tão querida, acabara de dizer sobre o meu pai?

— Mamãe, e o papai é desinteressante também?

— Ah, Maria Lúcia, o seu pai me enganou no início. Era um Rodolfo Valentino, mas acabou se transformando em um Cláudio Corrêa e Castro. Comedido demais, até quando não é necessário sê-lo.

Gustavo, meu noivo há praticamente dois anos, é um amante razoável. Não chega a ser o tão esperado Valentino de vovó, mas está longe de ser bonachão que nem o Cláudio Corrêa e Castro. Mas faltam-lhe os olhos de papai. Castanhos, cílios negros e que fazem voltas. Um charme.

No mês passado, dois ou três dias após o velório de papai, estive com minha mãe. Ela andava cabisbaixa, como se perdesse o grande parceiro de uma vida. Não queria tocar no assunto, mas há dias em que a imprudência está ali, como se a atiçar.

— Mamãe, o papai era um homem desinteressante?

— O que você disse, Maria Lúcia?

O arrependimento já me consumia, quando mamãe, talvez desconfiada de que há muitas décadas alguém teria se esgueirado atrás da porta, soltou uma gargalhada. Devo ter ficado branca que nem cera, enquanto Laura, minha irmã caçula, pareceu não entender.

— Para ser bem sincera, Maria Lúcia, seu pai quase sempre era um Cláudio Corrêa e Castro, mas…

Mamãe olhou para as filhas e soltou essa:

— Mas, de vez em quando, se fazia de Valentino.

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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