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O fantasma

A literatura da moça combinava com a sua aparência

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Lucila era poetisa, e das boas. Escritora gótica, escrevia versos repletos de espectros, aparições, jovens suicidas, vampiros e lobisomens. Seu nome era Lucila da Silva. Pensou em mudar para Lucila Allan Poe, em referência ao autor de O corvo, um dos pais da literatura dark, mas achou excessivo. Então assinava seus poemas como Lucila dos Anjos, em homenagem a Augusto dos Anjos, autor de imortais versos deprês como “Escarra nessa boca que te beija”.

A literatura da moça combinava com a sua aparência. Muito pálida, de cabelos negros lisos, costumava vestir-se de preto. Não um pretinho básico, de partir para uma balada e encarar todas, o que der e vier (ou quem vier e der); não, eram roupas de luto e de morte, sem um colarzinho, uma bijuteria sequer. Ademais, sair para dançar, beber e pegar alguém era algo inimaginável para a moçoila. Seu programa predileto era visitar um campo-santo, ver as inscrições nas lápides da cidade dos mortos e usá-las como inspiração para seus poemas.

Ela costumava chegar aos cemitérios uma hora antes de fecharem. Olhava os túmulos, anotava as inscrições mais interessantes, caminhava pelas alamedas sombreadas de árvores, procurava ser discreta, eclipsar-se. Quando um funcionário a via e insistia que ela saísse, obedecia sem discutir. Mas por vezes a esqueciam – e então era a glória. Passava a noite entre as tumbas, conjurando espíritos, recitando invocações para que se materializassem. Mas, tadinha, nunca vira nada, nem uma aparição, um espectro, um abantesma, um fantasminha pra remédio, e muito menos demônios ou as entidades sombrias que povoavam os livros de Lovecraft, outro luminar do gênero gótico. É verdade que, uma vez, assistira ao início da materialização de uma mulher loura; mas não tinha certeza, a aparição logo se desfez e, admitia a contragosto, podia ter sido uma combinação de bruma e luar em torno da estátua de uma jovem, erguida sobre um túmulo.

Num fim de tarde, ela vagava entre as sepulturas quando soou o aviso de que o cemitério ia fechar. Ficou quietinha, atrás de algumas árvores e, como ansiava, foi esquecida. Preparou-se para iniciar as invocações tão logo a noite caísse, quando viu que não estava sozinha. A pouca distância, junto a um túmulo, havia um homem também vestido de negro, tão pálido quanto ela. Aproximou-se dele, hesitante, e perguntou:

– Você também gosta de passear nos cemitérios no cair da noite?

– Gosto, é meu horário predileto. Os espíritos menos evoluídos ainda dormem, só alguns de nós podemos deixar nossos restos e sair… – Olhou-a cuidadosamente e concluiu. – Mas é raro ver alguém vivo por aqui, a essa hora.

– Você é um espírito? – perguntou Lucila num tom descrente. – Parece bem vivinho, um homem de carne e osso.

– Consigo me materializar quase todo, e as roupas escondem parte do que falta. Vago por aqui como penitência – diante do olhar interrogativo da moça, explicou:

– Não soube amar, desprezei uma mulher apaixonada, que se matou e deixou um bilhete pondo a culpa em mim. Morri pouco depois. Tenho de ficar por aqui até que 10 mulheres vivas transem comigo, mesmo sabendo que sou um espectro. É difícil… Estou aqui há anos e ainda faltam duas para eu finalmente me libertar e subir para uma dimensão espiritual melhor.

Romântica na última (e num atraso de subir pelas paredes e dar bom dia a cavalo), Lucila olhou-o séria e falou:

– Tá bom, transo com você. Aí só fica faltando uma mulher pra você ascender no plano espiritual.

Sem tocá-la, em silêncio, ele a conduziu à entrada de um mausoléu. Despiu-a parcialmente. Também removeu só a calça e transaram. Foi no máximo gostosinho, mas não dá para esperar muito de uma rapidinha entre uma vivente e um desencarnado sobre as pedras frias de um jazigo de família.

Depois de acabarem, ficaram quietos por algum tempo. Finalmente, ele quebrou o silêncio:

– Qual é o seu nome e quantos anos têm?

– Me chamo Lucila e tenho 25 anos (mentira, tinha 29).

– E aos 25 anos ainda acredita em fantasmas? – e deu um risinho nada espectral, humano, demasiado humano.

– Fantasmas? Eu? Claro que não – mentiu a autora gótica – Que eu saiba, fantasmas não usam cueca nem ficam excitados… – e em seguida admitiu, com uma sinceridade que a fez enrubescer. – Mas quase nunca tenho a chance de fazer amor. E fazer com um homem atraente é algo sempre bem-vindo! – e riu, o riso de uma mulher repentinamente segura de si, que se descobre capaz de dar prazer ao parceiro e ainda mais a si própria.

Lucila e Alfredo, o ficante fantasmagórico, passaram a transar no apartamento da moça (ele está desempregado e ainda mora na casa dos pais). E, sempre que possível, visitam cemitérios. Às vexes calha de serem esquecidos pelos vigias. Quando isso acontece, a festa corre solta, os dois deitam e rolam, pintam e bordam, na santa paz do campo-santo. Um fantasma, vendo tais cenas, ficaria com o rosto vermelho de vergonha – isso, evidentemente, se fantasmas sentissem vergonha, tivessem sangue que se concentrasse no rosto, tivessem rosto e, em especial, se existissem.

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