O novato na delegacia
O MISTÉRIO DOS ETS DE SÃO THOMÉ DAS LETRAS
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São Thomé das Letras é um pequeno e peculiar município do sul de Minas Gerais com cerca de dez mil habitantes. A cidade tornou-se um centro turístico que atrai diariamente milhares de turistas por suas belezas naturais e, especialmente, pelo clima místico que paira no ar juntamente com o imaginário das lendas que fazem parte da história do lugar.
Curiosos, amantes do tema e estudiosos das ciências místicas buscam nas paisagens da região o cenário perfeito para manifestações esotéricas, aparições de OVNIs e contatos com seres de outros mundos. Muitos grupos esotéricos têm sede em São Thomé das Letras, compartilhando a crença de que São Thomé tem uma energia especial e será o centro irradiador de importantes transformações para o planeta neste século.
Fantasia ou não, o pequeno e energizado município é considerado por muitos a Machu Picchu brasileira. Inclusive, uma das grandes atrações do lugar é a gruta de São Thomé das Letras que, dizem, é uma ponta da estação mística que liga São Thomé à famosa cidade inca do Peru através de um túnel secreto.
Alheio à singularidade esotérica do lugar, um novo morador tinha chegado à cidade de mala, cuia e esposa a tiracolo. Peterson, um paulistano da gema que tinha ido morar em Belo Horizonte por força do amor, fora aprovado no concurso para escrivão de polícia do estado de Minas Gerais.
Quando soube que tinha sido designado para assumir o cargo na delegacia de São Thomé das Letras, hesitou. Não obstante, incentivado por Maria Lúcia, decidiu encarar a mudança de domicílio. Pensando bem, uma pacata cidadezinha do interior só poderia fazer bem à relação do jovem casal, imaginou.
Após, juntamente com a esposa, ter se instalado provisoriamente em uma hospedaria da cidade indicada pelo delegado titular da comarca, Peterson chegou para o seu primeiro dia de trabalho. Apresentado a todos os colegas pelo delegado Bruno, ouviu do chefe:
— Peterson, você fica de plantão hoje à noite. Como é o seu primeiro dia de trabalho, Gervásio vai ficar com você para te explicar os procedimentos.
Gervásio, um experiente policial com mais de vinte anos de polícia e que mais parecia um jogador da NBA, sorrindo, falou ao colega:
— Fique tranquilo, Peterson, aqui não tem bololô já faz muito tempo.
Tranquilizado, o jovem escrivão também sorriu:
— Obrigado, colegas! Agradeço muito a ajuda e prometo todo o esforço para aprender o serviço rapidamente.
— Sem problema, respondeu o delegado! E traga uma marmita porque a comida aqui na cidade é cara, culpa dos turistas.
Seguindo à risca o conselho do chefe, Peterson voltou à delegacia às 20 horas a fim de cumprir o seu turno.
— Então, a cidade é mesmo calma, colega Gervásio?
— Aqui os munícipes são tranquilos. Vez ou outra, uma briguinha entre turistas que tomaram um chope a mais, um arranca-rabo entre marido e mulher, uma carteira batida, coisas desse tipo.
— Legal, bem diferente de São Paulo.
Já ia pelas duas da manhã no pacato lugarejo e os dois colegas assistiam a um filme no Telecine Action, quando ouviram soar a campainha da delegacia. Gervásio levantou-se da poltrona e foi abrir a porta.
— Boa noite, cidadão! O que deseja?
Esbaforido e com os olhos esbugalhados, um típico morador da região gaguejou:
— Licença, dotô, posso entrar um tiquim?
Um tanto contrariado, Gervásio aquiesceu.
— Claro, entra aí!
Parecendo assustado, o homem tirou o chapéu de palha e, nervoso, sentou-se em uma cadeira.
— O que houve, amigo? Veio prestar alguma queixa? – perguntou, Gervásio.
— Não sei se é queixa, dotô, mas quero contar um ocorrido, falou o homem, tropeçando nas palavras.
— Acalme-se e fale devagar, cidadão! Beba esse copo d’água, ofereceu Peterson.
— Pode falar com calma. Comece pelo seu nome, emendou Gervásio.
— Benício, dotô. Pois tava eu e o Zé Piolhim pescando lá pelas bandas da Cachoeira das Bromélias, niqui vimo umas luiz descendo do céu…
Parando de falar para beber água, Benício olhou em volta, como que para se certificar que estava seguro. Depois de esvaziar o copo, prosseguiu:
— Aí, nóis paremo a pesca e fumo chegando perto degavarinho, escondidinhos na mata. Aí vimo dois cabra bem istranho retaliando uma vaca.
— Ah, abigeato, isso tem muito na região, observou Gervásio.
— Mas num era coisa assim tão normal, dotô! Os cabra tinha quase três metro de altura, uniforme com luzinhas, antenas piscando na cabeça e usava umas pistolas de luiz que cortava a vaca como se ela fosse mantega.
— Sei, disse Gervásio. E depois, o que houve?
— Aí, depois eles botaram os pedaços de carne nuns sacos plásticos, carregaram nas costas e entraram no trem.
— Que trem?
— Um trem esquisito que perecia um pão de queijo gigante. Aí o trem acendeu as luiz e levanto voo para os céu di novo!
— E o que vocês fizeram então?
— Aí, nóis picamo a mula! Corremo, cascamo fora mesmo! O Zé Piolhim foi pra casa dele, mais eu quis vim contá proceis!
— E vocês registraram algo do que viram no celular? Filmagem, fotos, gravação de som?
— Nóis até tentou, dotô, mas os diabo dos aparenho não funcionava nada enquanto nóis tava perto do trem luminoso voadô!
Peterson, perplexo, perguntou para um tranquilo Gervásio:
— Vamos abrir o PC para formalizar o depoimento?
— Não precisa, colega! Olha, seu Benício, nós vamos diligenciar no local assim que amanhecer. Pode ir para casa dormir… e fique tranquilo.
— Sim, sinhô, brigado, dotô!
Após Benício sair, ainda nervoso e olhando para todos lados, Peterson questionou o colega:
— Mas, Gervásio, você tem certeza de que não deveríamos formalizar o relato do rapaz?
— Colega, acho que o delegado esqueceu de te falar que, ao menos uma vez ao mês, recebemos algum matuto com uma história parecida. Faz parte do folclore local, já estamos acostumados.
— Você quer dizer que ele inventou tudo o que falou?
— Rapaz, você não tem ideia do que faz uma pinga mineira em uma madrugada fria à beira de um rio. Ainda mais nessa região encharcada de lendas e histórias da carochinha.
— Nossa, então acho que também vou ter que me acostumar com isso, disse Peterson, atônito.
— Mais uns meses e você já vai estar curtido também, disse Gervásio, acalmando o colega com um sorriso.
— Olha, depois dessa, vou dormir um pouco. Daqui a duas horas me acorda para eu render você, e qualquer coisa me chama, falou Gervásio.
— Positivo, pode deixar, colega, respondeu prontamente o policial iniciante.
Passados alguns minutos, Peterson sentiu aquele apelo irresistível que vem mais do fundo da alma que do que do intestino. Então caminhou rapidamente em direção ao banheiro do alojamento.
Apesar de acompanhar o ceticismo do veterano colega com a situação, a imagem descrita pelo depoente teimava em voltar a sua mente. Sentiu um calafrio e apressou ainda mais o passo.
Ao passar em frente ao quarto de Gervásio, ouviu-o ao telefone. Curioso, parou e teve tempo de escutar parte do que o colega dizia.
— Eu já avisei para tomarem cuidado com essas expedições noturnas para coletar carne bovina… o que há com vocês? Ficaram viciados em churrasco? Não apreciam mais os enlatados multinutritivos do nosso planeta? Foram vistos por um morador outra vez!
Embasbacado, Peterson não sabia se ficava aliviado ou ainda mais assustado.