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Sua voz

As Filhas de Oxum nas Páginas do Vento

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Autor/Imagem:
Luzia Couto - Foto Francisco Filipino

Quando a lua se banha no rio Tietê e as estrelas se acendem como olhos de quilombo, eu ouço o sussurro das mulheres negras que tecem a literatura brasileira com fios de ébano e ouro. Elas não chegam de mansinho. Chegam como tempestade de verão: trovão na garganta, relâmpago na pena.

Carolina Maria de Jesus surge do quarto de despejo como uma fênix de latas velhas. Seus versos são ossos de fome, mastigados pela noite: “O lixo é meu espelho, e nele vejo o Brasil”. Cada palavra é um punhado de terra jogado no rosto da indiferença. Ela escreve com a tinta da miséria, e a miséria vira poema vira profecia.

Conceição Evaristo dança na escrevivência como quem gira no terreiro. Seu corpo é rio, é ancestral, é ponte entre o que foi arrancado e o que resiste. “Escrevo com o sangue das avós que nunca souberam o nome das letras”, murmura, e cada sílaba é um ebó de memória. Em Ponciá Vicêncio, o tempo se curva: o passado sangra no presente, o presente floresce no futuro. Ela não conta histórias. Ela as invoca.

Djamila Ribeiro entra como um sol negro que queima o mito. Seus ensaios são facas de luz: cortam a democracia de mentira, abrem feridas que o Brasil finge não ter. “Quem tem medo do feminismo negro?”, pergunta, e a resposta é o silêncio das elites. Mas o silêncio não cala Djamila. Ela é o grito que ecoa da senzala à universidade, da feira ao congresso. Sua voz é um quilombo de ideias.

Miriam Alves é o sarau que se faz carne. Seus poemas são tambores: batem no peito, acordam os mortos, fazem dançar os vivos. “Minha pele é mapa de estrelas caídas”, canta, e nesse mapa cabem todas as diásporas as que vieram nos porões, as que ainda vêm nos ônibus lotados. Miriam não escreve para ser lida. Escreve para ser sentida na pele, no ventre, na alma.

Essas mulheres são as filhas de Oxum que carregam espelhos d’água nas mãos. Nelas, o Brasil se vê não o Brasil das novelas, mas o Brasil das veias abertas, das vozes roucas, dos corpos que resistem. São as rainhas sem coroa que coroam a literatura com axé. E enquanto houver uma menina negra com um caderno escondido debaixo do travesseiro, sonhando em ser poeta, elas estarão lá não como musas, mas como orixás de tinta e papel, sussurrando no vento: “Escreva, filha. A tua voz é o Brasil que ainda não nasceu.

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