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Tempo

O Sol Negro que Gira

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Autor/Imagem:
Diogo Bueno - Foto Internet

“Olá, ouvinte incauto, que no aconchego de seu lar, rodeado de seus familiares, desafortunadamente colocou este disco na vitrola”. Assim abre-se Clara Crocodilo, ópera urbana de Arrigo Barnabé, de 1980, uma entrada triunfal, quase um aviso ritual, gravado nos sulcos profundos do vinil de doze polegadas. Há algo de ancestral neste gesto de colocar um disco para girar: um toque cerimonial que desperta mundos, personagens e memórias. O vinil, afinal, é mais do que suporte, é um portal. E Arrigo, com sua obra ácida e revolucionária, nos lembra disso desde o primeiro segundo, cada palavra é um convite e um aviso: prepare-se, pois adentrar um disco de vinil é atravessar uma fronteira, uma dobra do tempo onde o passado, o presente e o porvir se encontram num giro de 33 rotações por minuto.

O disco de vinil ocupa hoje um lugar curioso: vive no imaginário de muitos jovens como uma fantasia tátil, quase mitológica, e ao mesmo tempo habita as memórias concretas dos mais velhos, que o viram atravessar décadas. É objeto de resistência cultural, sobrevivente teimoso, que ainda desperta olhares nostálgicos e curiosos, como quem reencontra uma velha fotografia que nunca perdeu o brilho.

Ele existe suspenso entre mundos, lembrado pelos que viveram sua era dourada e sonhado pelos que o descobriram já como relíquia. Esquecido pelo tempo, por décadas, foi relegado a prateleiras olvidadas, exilado em sebos úmidos, carregando poeira, cheiro de madeira velha e histórias densas que ninguém mais contava. Sobreviveu nas mãos diligentes dos DJs, sacerdotes elétricos de festas e pistas, que mantiveram acesa a chama dos toca-discos, impedindo o vinil de afundar no esquecimento. Para eles, o disco nunca morreu; apenas descansou.

Voltou colorido, translúcido, marmorizado. Voltou estampado com imagens que se movem nos chamados discos zoetrope que parecem ganhar alma quando a agulha toca sua superfície. Voltou também como fetiche dos colecionadores, que buscam raridades como quem procura relíquias de um templo perdido. Entre essas raridades, brilham pequenas estrelas quase secretas, como Tempo de Fratura, de Alcides Neves (1979), obra independente, de tiragem mínima, que se tornou mito por ser justamente aquilo que o mercado não via: uma insurgência poética, um canto das margens, um suspiro de liberdade que poucos puderam segurar nas mãos.

Agora, contudo, o disco de vinil não volta apenas, ele avança. Retorna com força de maré, reacendendo o desejo dos artistas de ver suas obras registradas nesse formato que respira, que gira, que exige presença. Mesmo álbuns antes confinados ao frio gélido dos CDs, com seu sonido puro e cristalino, filhos da era digital que marchou veloz, hoje ganham nova vida em LPs, como se finalmente encontrassem o corpo que lhes faltava. E se há quem diga que o som do vinil é incomparável, que o chiado é uma espécie de alma soprando através do tempo, eu prefiro pensar que, no mundo das nuvens digitais, ouvir vinil é um ato de resistência afetiva.

Ah, o tempo, esse tal de tempo que Caetano Veloso elevou à condição de oração em Cinema Transcendental (1979). Ele nos lembra que a arte não se consome em pressa, mas se contempla. Que a vida gira em compassos lentos, às vezes trôpegos, às vezes justos, mas sempre circulares, como um disco que nunca perde o eixo. O vinil, esse tesouro circular, ensina-nos a girar junto com ele, sem ansiedades, sem saltos, sem algoritmos.

Em tempos virtuais, acelerados, filtrados por telas e algoritmos que nos servem canções como quem distribui migalhas apressadas, ouvir um disco de vinil é um ato romântico, talvez até subversivo. É decidir desacelerar enquanto tudo corre. É voltar a contemplar o gesto simples e grandioso de colocar um álbum para tocar e deixá-lo fluir faixa a faixa, sem pular, sem interromper, sem disputar com notificações. É ouvir com o corpo inteiro, com a casa inteira, com o silêncio ao redor.

E aqui, neste primeiro ensaio, nestas mal traçadas linhas, nessas linhas que se estendem como fios de um novelo antigo, retorno às obras do final dos anos 70 e começo dos 80 não só por sua importância estética, mas porque 1979 é o ano em que eu mesmo nasci. Talvez por isso, desde então, sigo como um pesquisador orgânico das canções e das melodias, doa dia a dia de alguém que não apenas escuta música, mas mergulha nela, tateia suas camadas, descobre nela sentidos que a pressa do cotidiano esconde. A música, para mim, é casa; e o vinil, seu alicerce.

Vim de chiados, de capas gastas, de noites ouvindo o lado B quando todo mundo dormia. Vim de canções que me ensinaram que a vida, e o planeta, não são linhas retas, mas um círculo, um retorno, uma repetição que nunca se repete igual.

E, girando, vida, planeta e vinil, relembramos aquilo que o mundo moderno tenta nos fazer esquecer:

Que a arte é uma forma de respirar.

Que o som é uma forma de lembrar.

Que o tempo, quando tocado por uma agulha, pode ser infinito.

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Diogo Bueno, internacionalista de formação, gestor cultural de vocação e músico de coração.

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