Asa Norte
Genoveva, intragável e folclórica
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Genoveva não era de gastar muita saliva quando queria cuspir algum desaforo, ainda mais se fosse por uma causa justa. No entanto, mesmo diante de flagrante equívoco, a mulher fazia questão de fazer uso do mesmo estratagema. E que os ouvidos se acostumassem com a insolência ou, então, que fosse pros quintos do inferno.
A despeito de tamanho destempero, a senhora, que pela aparência beirava os 80 anos, desfrutava de certo prestígio na vizinhança, como se fosse parte da história daquela gente. Uma espécie de chata de estimação. E ai se alguém de fora falasse mal da mulher! Ih, não faltariam bocas para defendê-la com unhas, dentes e uma sacola cheia de impropérios.
Viúva pela segunda vez antes dos 30, Genoveva até que tentou convencer dois ou três a firmarem compromisso, mas os gajos, ressabiados que ficaram, preferiram não ir além das noites de alcova. O tempo correu ligeiro e, então, a jovem e atraente Genoveva recebeu a visita das implacáveis rugas. Todavia, isso não foi empecilho para deixar de ir em busca de prazeres, apesar de cada vez mais escassos, até que o caldo engrossou e, então, a mulher se viu sozinha. Quer dizer, há quem afirme que, mesmo que raramente, a coroa ainda vive momentos de luxúria, que podem ser ouvidos por toda a quadra na Asa Norte.
Se isso é lenda ou fato improvável, não se pode afirmar com certeza. Seja como for, ninguém duvida ou acredita, como se aquela condição fosse mais um atrativo que encantasse e afastasse os olhares curiosos. Ademais, a folclórica personagem, vez ou outra, era o tema central de acaloradas discussões no botequim do Bosco, onde a galera mais tradicional costumava se juntar nos fins de tardes de domingo.
E lá estava a velha guarda reunida, momento em que adentrou no recinto a Genoveva, amparada pela velha bengala com castão de cabeça de cavalo. Ela lançou um olhar sobre a mesa e reconheceu a todos, não somente os amigos, mas principalmente um desafeto: o Horácio.
Horácio, tipo incomum na área, não passava despercebido, seja por conta do bigode à Salvador Dali, seja pela peruca sem qualquer congruência com a realidade. Regulava em idade com Genoveva, mas apresentava aparência mais estragada, como se a combinação de genética ruim e hábitos péssimos tivessem dado as mãos na juventude e, desde então, mantinham sólido matrimônio.
Genoveva foi até o balcão e pediu um maço de cigarros, o que chamou a atenção dos presentes. Será que a velha havia começado a fumar? Outra hipótese é de que ela talvez o fizesse nas noites solitárias no pequeno apartamento.
— Começou a fumar, Genoveva?
— Horácio, quando é que foi mesmo a última vez?
— Última vez do quê?
— Que eu te mandei pro inferno.
Todos riram, menos o Horácio, que quis porque quis dar o troco. O problema é que não era rápido de raciocínio. Pensou, pensou, pensou e nada. Mas eis que, já na calçada em frente ao bar, a Genoveva escorregou e caiu de bumbum no chão.
Ninguém riu. As testemunhas pareciam sinceramente preocupadas com o bem-estar da Genoveva. Horário e mais dois foram socorrê-la, mas a mulher estava mais intragável do que de costume.
— Tire essas patas de mim, Horácio!
— Eu só quero ajudar.
— Que ajudar o quê?! Tu me passou uma rasteira, que sei!
— Eu?
— Sim! Você mesmo, seu salafrário!
Bosco, o dono do boteco, quis sair em defesa do Horácio.
— Genoveva, todo mundo aqui viu. Você caiu sozinha. A culpa foi sua.
A idosa fitou o Bosco, depois olhou a plateia ao redor e, utilizando de toda a sua expertise, sai com essa.:
— Olha aqui, Bosco, como você mesmo disse, a culpa é minha, e eu a coloco em quem eu quiser.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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