Flaporco
Cadu Matos, flamenguista que é, não perde a chance de provocar o porco
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Deuses são gulosos. Não satisfeitos com um brasileirão pra lá de emocionante – que deve ser conquistado pelo Flamengo no início de dezembro –, propiciaram a realização, pro final da Copa Libertadores, do maior clássico do futebol brasileiro contemporâneo, um Flaporco, Flamengo x Palmeiras. Era o terceiro do ano, o mengão vencera o primeiro no chiqueiro da porcada e o segundo no Maracanã.
Como sempre fazia nos jogos do mais querido, Jorge dirigiu-se à estátua de são Judas Tadeu e rezou fervorosamente pela intervenção sobrenatural do santo para garantir a vitória rubro-negra. Também o convidou a assistir o jogo a seu lado, torcendo adoidado e tomando uma cervejinha, que ninguém é de ferro. O que já havia acontecido no Flaporco anterior, vencido pela malvadão em outubro, no Maraca (para saber mais sobre esse triunfo épico, leiam o conto Flaporco, mais um, deste escriba).
Só que, dessa vez, não houve resposta. Nem a garantia de uma proteção reforçada para o time da Nação, nem a materialização do parça santificado. Jorge já estava arrancando os cabelos, dizendo que o traíra havia abandonado o mengão, quando Judas Tadeu se materializou a seu lado, vestindo o uniforme do jogo e chuteiras.
– Cara, desculpe a demora, amarrar as chuteiras deu um trabalho do cão. Cê sabe, falta de prática…
– O senhor vai entrar em campo? – indagou Jorge, espantadíssimo.
– Claro que não, parece que bebe! – respondeu Judas, indignado. – Vou é incorporar em cada jogador, brincar nas onze. Ou melhor, encostar nos onze – explicou, com um sorriso.
– Mas sua presença não vai atrapalhar a pontaria de um atacante, ou o desarme de um defensor? – insistiu o amigo do santo.
– Claro que não. Fico longe dos músculos, do psiquismo do atleta, de seu equilíbrio emocional. Mas aumento sua calma, seu poder de decisão, afasto qualquer influência negativa… – Deu de ombros e confessou:
– Quer saber? Faço isso mais por mim, pelo prazer de vencer com o mengão, do que por eles. Pro esquadrão, bastaria a proteção espiritual reforçada que estou enviando…
Jorge concordou em silêncio, ofereceu uma cervejinha – o santo recusou, não dava, logo ia entrar em campo –, e se desmaterializou. O chegado de carne e osso ligou a televisão e sentou-se no sofá, roendo as unhas de nervosismo.
O jogo começou. Com seu olhar treinado, Jorge percebia a presença de um judeu barbudo junto a cada defesa de Rossi, cada desarme de Léo Pereira, cada lance mágico de Jorginho e Arrascaeta. Mas quando Judas/Bruno Henrique chutou por cima do gol, o parça do santo explodiu:
– Seu grosso! Parece que jogou pedra na cruz!
O que, convenhamos, é uma heresia sem tamanho.
O santo/atleta deslizou os dedos sobre o rosto. Jorge ouviu perfeitamente algumas palavras, murmuradas baixinho:
– Desculpe, amigo. Na próxima, ele(eu) encaçapa(o).
A jogada da vitória veio em meados do segundo tempo. Judas/Danilo cabeceou sozinho, depois de um escanteio, e a bola foi morrer no fundo da rede palmeirense. A vara (coletivo de porcos) bem que tentou, mas não deu. Final, Flamengo 1 x Palmeiras 0, Flamengo tetracampeão da Libertadores.
Muito mais tarde, quando Jorge e Judas Tadeu tomavam uma cervejinha, antes do santo se desmaterializar e voltar a ser uma estátua na estante, Jorge perguntou como fora possível neutralizar a porrada de santos italianos, impedindo-os de salvar o Palestra.
– Como já mencionei, eles não gostam muito de futebol. E os que gostam, estão suando a camisa pra levar a Itália à próxima Copa do Mundo.
Tomou um último gole de cerveja e concluiu:
– O que deu mais trabalho foi são Francisco de Assis. Foi neutralizado não por mim, mas pelas mascotes do Flamengo.
Diante do olhar atônito de Jorge, o irmão de Jesus (não o Jorge; o original) esclareceu:
– Uma delegação de urubus voou até o Peru e pediu auxílio de seus primos gigantescos, os condores andinos. Dois deles fingiram estar com as asas machucadas e invocaram são Francisco de Assis. O santo protetor dos bichinhos ficou cuidando deles e esqueceu dos palmeirenses.
Dei um risinho sacana e, antes de se desmaterializar, falou uma barbaridade que, se vivo fosse e se canonizado já não estivesse, talvez lhe custasse o paraíso e a santidade:
– Bem feito! Pau no rabo da porcada!
(Mentira minha, ele falou coisa mais cabeluda, mas parafraseei, aliviei a barra; afinal, sou um escritor de bons costumes.)