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O MORTO QUE NARRA

Casa, corpo, cosmos: três escalas que se espelham

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Até hoje não entendi se foi sonho ou realidade. Nem quanto tempo se passou após aquela inédita sensação.

O fato é que eu havia morrido. Sim, eu estava definitivamente e seguramente morto. Não sei bem como, mas voltei para a casa em que morei até o final da minha adolescência, antes que nos mudássemos de cidade a fim de que minha irmã e eu frequentássemos a universidade. Meu pai pediu transferência da filial da empresa onde ele trabalhava para a matriz e, um dia, acompanhando o caminhão de mudança, fomos a bordo de nossa velha Belina para a capital.

Todos se integraram rapidamente à nova vida, até os bichos de casa, nossos gatos Fred e Antonieta. Menos eu. Sentia falta, todos os dias, da rotina na nossa velha casa, que havia sido também a casa de meus avós. Nunca me esqueci do cheiro de cada cômodo, da forma como ela fazia barulhos estranhos à noite – que eu vim compreender mais tarde como a dilatação e a contração normais dos velhos materiais que a compunham – e a delicadeza com que a passagem do trem invadia meu quarto nas madrugadas.

E, passado aquele transe, um estado de torpor e dúvida, eu, misteriosamente, estava ali de volta. Tudo era exatamente igual.

Até as roupas na gaveta ficavam na mesma ordem em que eu havia deixado pouco antes da mudança. Eu não entendia nada, e entendia tudo ao mesmo tempo. Morrera e não lembrava por quê. Eu passava as mãos nas camisetas dentro da gaveta, sentia o perfume tão familiar do amaciante que minha mãe usava na lavagem e pensava que eu não escolhera a última roupa com que iam me vestir. Mas isso não fazia qualquer diferença.

De repente, não sei se por telepatia ou por imaginação, ouvi, ou supus ter ouvido, um diálogo entre minha irmã e uma prima. Queriam esvaziar meu armário, já na casa nova da cidade, e guardariam algumas coisas de recordação. Minha prima pegaria justamente uma camiseta que eu detestava, que me apertava no pescoço e que eu usara apenas uma vez. Passou-me pela mente que ela poderia ter escolhido algo melhor e que, se pudesse, ou se elas me ouvissem, eu mesmo daria a sugestão.

Tudo era estranho. O tempo avançava e retrocedia com a rapidez do meu pensamento. Onde eu pensava, eu estava.

Ao cabo de alguns minutos, eu havia viajado para a minha infância, sentindo ao meu lado a presença dos meus avós. Fixei o olhar, curioso, em minha avó, que morrera quando eu era muito pequeno. Convivi pouco com ela, e não me lembrava direito de suas feições. Prestei atenção em cada detalhe: nas rugas, nos cabelos brancos, nos olhos azuis. Em como ela dizia para eu parar de correr de velocípede, e me dava gelatina em cubinhos coloridos, misturada a creme de leite.

Em seguida, estive de novo no ginásio onde conheci Patrícia. Loura, esguia, alguns centímetros mais alta do que eu, me olhava com desprezo e mais eu gostava dela. Num instante, avancei ao tempo presente, revendo Patrícia modificada pelos anos que tinham passado – eu a encontrara numa rede social uns meses antes de… enfim, uns meses antes de começar esta história. Os anos haviam sido implacáveis com ela, e parecia uma pessoa diferente, sem expressão na face, sem a vivacidade e presença de espírito que tanto me fascinavam na adolescência.

Comecei a pôr em dúvida meu delírio quando pensei que, ao morrer, éramos absorvidos por alguma força, como se algo misterioso nos levasse de volta a uma origem comum, apagando, aos poucos, todos os pensamentos e sensações. E eu estava ali, ainda completamente consciente de minha individualidade, com a única diferença que, agora, não conseguia ser ouvido ou visto pelos outros.

O que fazer numa situação dessas?

Ninguém havia me falado como me comportar depois do grande encontro com o desconhecido, a noite da alma. Tentei lembrar-me de algumas lições do Padre Nelson durante o catecismo. Nada me soou útil naquele momento. Avancei alguns anos, até quando conheci Renata, minha primeira namorada, vagamente espírita. Diziam que a mãe dela recebia uma cigana. Mas nunca consegui levar a sério aquela pataquada, pois, incorporada “a cigana”, a mulher não dizia nada diferente das vulgaridades que costumava pronunciar quando pensava com a própria cabeça.

Minhas leituras não haviam sido muito edificantes neste particular. As únicas memórias que me chegavam eram as póstumas de Brás Cubas, escritas por Machado de Assis, e João Simões Continua, de Orígenes Lessa. Nenhum dos dois livros era exatamente esclarecedor sobre o que fazer achando-se morto. Vivo e morto ao mesmo tempo.

Num segundo, avancei vários anos no tempo e, andando pelo pequeno cemitério da cidade do interior, descobri minha sepultura caiada no meio de tantas outras de completos desconhecidos. A sepultura estava gasta, decrépita, com um retrato de louça que lembrava vagamente o que eu tinha sido. O retrato estava quebrado justamente onde o nome vinha escrito, de modo que eu não consegui confirmar se era eu mesmo ou outro. Como assim? Percebi que não me lembrava mais de minhas próprias feições, e fazia muito tempo que não conseguia me enxergar no espelho.

Fiquei horas, talvez dias, brincando de viajante no tempo, perambulando pelos lugares que visitava ao sabor do pensamento e na velocidade da luz. Foi aí que lembrei, ou revisitei, a conversa que, ainda na escola, tive com um amigo: que, se fôssemos espíritos, podíamos viajar livremente pelo espaço sem nos preocuparmos com gravidade, vácuo ou falta de oxigênio. Num instante, estava em órbita da Terra, no fundo de uma cratera da Lua e, sem demora, em sua face escura. Vi de perto os anéis de Saturno, de gelo e poeira, pelos quais sempre fora fascinado desde uma aula de geografia no primário. Queria visitar um buraco negro. Quem sabe nele encontraria respostas para as minhas dúvidas? Vigorariam, ali, as mesmas leis da física? A velha relação de causa e efeito? Haveria seres ou pensamento, outras realidades ou universos?

Ousei questionar coisas maiores. Haveria um Deus? Ele estava atento ao que fazíamos, ou era completamente indiferente? Fomos criados à sua imagem e semelhança, ou apenas estávamos largados à própria sorte num vazio sem fim?

Percebi que era a hora de ser mais prático, tentar entender minha situação de uma vez por todas. Pensei e, num átimo, voltei à Terra, no meio de pessoas conhecidas. No entanto, todas estavam vivas. Fiquei na dúvida sobre onde estariam os outros na mesma situação que eu. Fui atraído para algum lugar que, em princípio, não reconheci. Aos poucos, meus olhos se acostumaram e entendi que estava na sala de Luciana. Ela pensava fortemente em mim e me atraiu.

Luciana havia sido minha grande paixão nos últimos tempos, mas não me dera qualquer sinal, e eu sequer me aproximei. As pessoas andavam muito difíceis ultimamente, e me aproximar sem uma indicação clara estava fora de cogitação.

Luciana estava em seu apartamento, banhado por uma linda luz do sol, em meio a livros e anotações. Sentia-a preocupada com alguma coisa, mas eu interrompera suas atribulações e podia ler o que ela pensava.

Ela se lamentava por não haver falado mais comigo, não ter me dado atenção.

Sentira-se atraída por mim, mas ficou receosa de me dar uma chance e quebrar a cara como acontecera com seu ex-namorado argentino. E, agora, o arrependimento a consumia. Passou-lhe pela cabeça que, mesmo que fosse por pouco tempo, talvez o final da minha vida pudesse ter sido mais feliz. Ela sabia das minhas intenções, do meu profundo desejo, graças à indiscrição de uma amiga em comum. Não me doía pensar no que poderia ter sido, e talvez nem a ela, mas, de repente, uma lágrima furtiva rolando de seus olhos me atingiu profundamente. E eu fui prestando atenção nela, nos contornos de seu rosto, nos cabelos, nos lábios meio cerrados. Quando percebi, estava vendo Luciana por dentro, literalmente. Os órgãos, vivos, pulsavam cheios de uma intensa força vital. Os pensamentos pareciam lampejos no cérebro. E eu fui olhando com mais detalhes, e mais profundamente, até vê-la como uma essência de energia. Do sistema à célula, da célula ao átomo… E percebi tudo girando à minha volta, a distâncias enormes, quase infinitas, da mesma forma que vira no espaço.

Quantos mistérios teria eu para aprender ainda! Analisar de perto os seres e perceber as sutis relações existentes. Traçar analogias, investigar semelhanças.

Ver, quase ao mesmo momento, os dinossauros andando sobre um planeta vazio, inóspito, e, em seguida, avançar para tempos muito à frente daqueles em que eu havia vivido, igualmente inóspitos e vazios.

Espaço e tempo não eram mais barreiras para mim.

Um dia, eu já não respondia pelo nome que tivera. Ou ninguém se lembrava mais dele. Era como se aquela individualidade houvesse sido dissolvida. As orações feitas por minha irmã em intenção da minha alma e o remorso de Luciana foram os últimos contatos humanos que percebi. E elas já estavam velhinhas.

Fazia tempo que me sentia como um viajante que põe no chão uma pesada mala depois de uma viagem longa demais. Não tinha corpo, mas senti uma espécie de cansaço bom, um conforto por não me submeter mais às vicissitudes da carcaça de carne e osso.

Pela primeira vez desde que morri, não havia lembranças, nem perguntas, nem comparações com livros de Machado ou de Orígenes. Apenas um vazio que não era ameaça nem castigo. Só um vazio.

E, curiosamente, dormindo cada vez mais fundo, foi assim que voltei a me sentir inteiro.

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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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