Curta nossa página


Alma penada

Era uma alma penada que vagava à noite pela cidade

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Ele era uma alma penada. Vagava à noite pela cidade, olhando os viventes, suas pequenas (ou não tão pequenas) alegrias e tristezas. Quanto a ele, não sentia coisa alguma, nem sequer pena de si mesmo.

Os transeuntes não o viam, ou então preferiam ignorá-lo, talvez sentindo que ele já não pertencia a este mundo. Isso não tinha importância, sua condição estava além dos olhares alheios de aprovação ou reprovação. Limitava-se a caminhar, sem rumo definido, até encontrar o que buscava.

Era sempre uma espelunca, um boteco de quinta categoria. Toda vez um novo, não procurava duas vezes o mesmo botequim. Entrava e ficava quieto junto à porta, como que saboreando a atmosfera de derrota ali reinante. Depois, aproximava-se do balcão e dizia:

– Uma cachaça.

Nunca um “Mermão, me vê uma caninha”, para estabelecer algum tipo de familiaridade, de cumplicidade. Jamais um “por favor” no final. Era uma ordem, dirigida a ninguém. E ninguém lhe respondia. A bebida era colocada diante dele, e ponto.

Minutos depois, outra ordem:

– Uma cachaça.

Não “outra dose”, algo assim. Só “uma cachaça”. A coisa se repetia umas três vezes, nunca mais do que quatro, e ia embora. Aquelas palavras dirigidas a ninguém eram, na maioria esmagadora das vezes, as únicas que pronunciava o dia inteiro.

De volta ao pardieiro onde se refugiava, antes de vagar pelas ruas, sentava-se na beira da cama e olhava a parede, sem pensar. Depois desabava, meio bêbado, e dormia sem sonhos ou pesadelos, para recomeçar tudo no dia seguinte.

Essa parte do seu insosso cotidiano era a única que sofria variações. Por vezes, depois de voltar do botequim e sentar-se na cama, pegava o canivete e cortava-se no braço. Ver o sangue que fluía em seu corpo derramar-se no chão, antes de cessar de cair e coagular, dava um testemunho de seu desespero: ainda estava vivo, a rotina daquela existência sem sentido teria de ser suportada por pelo menos mais um dia. Até que chegasse o fim inevitável (mas não buscado ansiosa e ativamente), e ele se juntasse para sempre às demais almas penadas. Porque não tinha planos de se suicidar. Mortos não se matam.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.