João e Maria
Ele voltou pra seus soldadinhos de chumbo imaginários
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João estava criançando. E não era sem tempo. Tinha 80 anos, morava sozinho, estava meio surdo, ficando cego, mas restavam memórias felizes do tempo de infância. Não teve de fazer muito esforço, foi preciso apenas dar férias ao superego e recuperar o senso de maravilhamento que tinha quando garoto.
Dançar na chuva, por exemplo. Não uma coreografia rebuscada, tipo a de Singing in the rain, mas uns passinhos e, em especial, umas voltas com os braços abertos. E estampar no rosto um enorme sorriso, de orelha a orelha. E, acima de tudo, ignorar os comentários de “Velho gagá” vindos dos que testemunhavam sua performance e zombavam dela.
Ou bater bola com a molecada. A bola era de meia, o gol, dos dois lados, de camisetas empilhadas no solo. Ele, claro, não foi escolhido pra jogar, mas a bola veio em sua direção e enfiou o pé. Fazia mais de 40 anos que não dava um chute tão preciso. Pegou de primeira, a bola passou raspando uma das camisetas, não entrou por pouco, os meninos aplaudiram, “Belo chute, vovô”, ele agradeceu com um sorriso e foi embora, feliz da vida.
Ou então brincar com soldadinhos de chumbo. Eles não existiam mais, perdidos no buraco negro para onde vão quase todos os brinquedos da infância, mas lembrava deles como se os estivesse vendo – hussardos e granadeiros com os coloridos uniformes dos exércitos napoleônicos, em contraponto aos casacos vermelhos mais sóbrios da infantaria inglesa. Fora um presente do pai e, segundo João, o melhor de todos, e olha que ele ganhara um DKW aos 17 anos de idade! Ele soube, de algum modo (devia ter uns 9 anos quando recebeu os soldadinhos), que os ingleses haviam derrotado os franceses, e passou a aplicar surras homéricas nas tropas de Napoleão. Os soldados com que João brincava agora eram imaginários, não comprou outros para substituir os originais, mas passava horas fazendo as tropas da França morderem o pó.
Certa tarde, depois de conduzir os casacos vermelhos a mais uma vitória contra os franceses, João saiu para dar uma volta. Seguiu para o parque onde quase havia feito o gol de placa, na pelada com os moleques. De repente, viu uma moça sentada num banco. Era baixinha e não muito bonita, mas olhava para os pássaros e árvores com um enlevo que o encantou.
Aproximou-se devagar e percebeu, pelos olhos amendoados e orelhas pequeninas, que ela era portadora da Síndrome de Down – em tempos mais grosseiros e menos politicamente corretos, seria chamada de mongoloide. Ela dirigiu-lhe um sorriso encantador, ingênuo e franco, e falou:
– Pode sentar, moço. Eu não mordo – e deu uma risada cristalina.
João estava voltando a ser criança, mas não perdera (ainda?), seu acervo intelectual. Sabia não se tratar de uma doença e sim de uma condição genética, resultante da presença de um cromossomo extra nas células: 47 em vez de 46. Sabia também que, em cada 700 nascimentos, um bebê é portador da Síndrome de Down.
O que ele nem podia imaginar era a extrema delicadeza e amorosidade dos indivíduos down. A moça, de 22 anos, chamava-se Maria, estava apaixonada pela vida, pelos bichos e plantas, pelas pessoas que a cercavam, e logo arranjou um lugar em seu coraçãozinho para João. Conversaram até anoitecer. Depois ela foi pra casa, morava perto, e ele voltou pra seus soldadinhos de chumbo imaginários.
Passaram a encontrar-se regularmente, e a criança que renascia nele ficou encantada por encontrar alguém que descobria o mundo com olhos infantis, mirando cada coisa como se a visse pela primeira vez. “Nenhuma agressividade, nenhuma violência, nenhuma malícia em Maria”, pensou embevecido. “O atraso no desenvolvimento intelectual é mais que compensado pela capacidade ampliada de amar”. Por fim, admitiu que amava Maria – platonicamente, é claro, mas amava.
Maria tinha outra opinião. Se os fogos de seu amigo de 80 anos estavam quase apagados, os hormônios da jovem mulher de 22 anos estavam bem acesos. E a proximidade de João intensificava as chamas.
Certa tarde, quando começava a anoitecer, ela beijou o rosto do amigo, perto da boca, e suplicou:
– Me ensina a beijar!
– Não dá, querida. Sou muito mais velho que você!
– Ensina, vai… Dei meu único beijo com um garoto igual a mim, nenhum de nós sabia o que fazer… – e riu, mas não o som cristalino emitido por uma criança, havia um tom mais sensual, carregado de desejo, de uma mulher que quer aprender tudo.
O corpo dela exigia. Ele cedeu e a beijou bem de leve nos lábios, num toque diáfano como as asas de uma borboleta.
Ela queria mais, ele começou a querer também. O segundo beijo foi mais forte, no terceiro as línguas se tocaram, nos seguintes se entrelaçaram. Maria gemeu de prazer.
Nesse momento apareceram os caras. Eram quatro, bombados, ratos de academia, de idades variáveis entre 25 e 30 anos. Viram o casal e começaram a zoar:
– Isso, vovô! Manda vara que tu ainda aguenta!
Um deles percebeu a condição de Maria e gritou:
– O velho tarado tá abusando da mongoloide!
Outro, mais grosseiro, entrou em cena:
– Tu quer comer a retardada, né, véio tarado? Vai levar muita porrada pra aprender!
Assustada ao escutar a palavra “retardada”, que a feria desde a infância, Maria aninhou-se junto ao peito de João, como uma avezinha sob a asa da mãe. Os caras, que queriam posar de heróis – e, quem sabe, dar uma trepadinha com a jovem agradecida – ficaram furiosos.
– Tava gostando, né vadia? Vai ver o que acontece com teu macho!
João empurrou Maria para longe de si, levantou-a do banco e ordenou, ríspido:
– Corre pra casa!
Enquanto a amiga fugia, João levantou-se, com um sorriso de desafio no rosto. Sentia-se prestes a reviver um dos momentos mais gloriosos de sua infância, a briga que teve, aos 9 anos, com três garotos de 11-12. Ele apanhou muito, chegou em casa todo machucado, mas por algum tempo castigou os três com uma saraivada de socos.
Só que, aos 82 anos, não deu pra saída. Faltavam-lhe músculos para bater forte, agilidade para se esquivar. Foi derrubado e barbaramente chutado, repetidas vezes, no peito e na cabeça. Depois os carinhas foram embora, deixando-o no chão, à beira da morte.
João foi levado para um hospital, mas não resistiu. Quanto a Maria, levou tempo para se encantar outra vez com os bichos e plantas, e mais ainda para olhar as pessoas com um sorriso cândido. E nunca, nunca mais frequentou a praça onde tentara descobrir o amor.