Herança genética
Fátima estava em Paris há dois meses
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– A senhorita é muito bonita.
Sentada num café parisiense, absorta na leitura de um romance, Fátima custou a perceber que alguém falava com ela. Tirou os olhos do livro e viu um atraente jovem moreno, de traços árabes. E o francês dele não deixava dúvidas sobre sua origem.
“Hum, sírio ou libanês. Que nem meus pais. Vai ver, somos primos”, pensou divertida.
Fátima estava em Paris há dois meses. Ganhara uma bolsa para fazer mestrado em filosofia e partira com tudo. Esperava a chegada do namorado, mas, na verdade, não sentia um pingo de falta dele. Paris continuava a ser uma festa móvel, e a moça queria entrar na dança. Estava apaixonada pela cidade e pelos parisienses. Mesmo que tivessem raízes no Oriente Médio. Que nem ela.
Diante do silêncio da jovem brasileira, o moço voltou à carga.
– Sim, muito bonita. Gostaria muito de dormir com a senhorita. Gostaria de dormir comigo?
Fátima levou um susto com a pergunta direta. Pensou em chamá-lo de mal educado com seu francês impecável – ou, em bom português, de mandá-lo à merda –, mas desistiu. Afinal, estudara num colégio francês, destinado a transformar brasileirinhas em jeunes filles rangées, moças bem comportadas. Moças rangées não xingam. Em especial aquelas morrendo de vontade de se desarranjar um pouquinho. De ser um tantinho menos comportadas. Era o caso dela.
– Obrigada – respondeu. De súbito, teve vontade de estabelecer uma cumplicidade cultural com o árabe, talvez com isso ele abandonasse as propostas de cunho sexual, perguntasse pelas origens da família dela, falasse da família dele, em resumo, estabelecesse uma conversação mutuamente enriquecedora. Então repetiu o agradecimento, primeiro em francês e depois em árabe, complementando as palavras com um sorriso radiante.
– Merci beaucoup. Chukra.
Ao ouvir isso, o homem se animou, e desandou a falar em sua língua:
– Você fala árabe? Achava que era francesa, mas é melhor assim. Sei lidar com fêmeas árabes. Obediência aos preceitos do Islã e ao homem, é tudo o que se espera delas. E, claro, que deem à luz muitas crianças!
E prosseguiu, dizendo coisas que não combinavam com sua imagem de universitário: era como se incontáveis gerações de árabes dominadores de suas mulheres, presentes em seus genes, tivessem tomado conta dele. Contou que lhe daria muito prazer na cama, desde que ela se mostrasse uma esposa devota, respeitadora das tradições. Porque não a queria apenas como amante, para isso serviam as francesas depravadas. Ela era bonita, de origem árabe, seria uma excelente mãe para seus filhos.
Fátima escutou tudo aquilo sem entender uma só palavra. Mas, estranhamente, compreendia o que ele estava dizendo. E dentro dela, inumeráveis gerações de mulheres submissas que compunham sua herança genética a pressionavam. “Aceite, filha, é assim que deve ser, ele é o homem, você é apenas uma mulher”.
A jovem decidiu-se. Baixou os olhos, pegou a mão do homem, beijou-a e levou-a à testa. Era a mostra perfeita de submissão. Dentro de seus genes, milhares e milhares de mulheres dominadas pelos maridos rugiram em aprovação.
Foi assim que Fátima tornou-se uma das esposas de Ahmed (ele tinha mais uma). É mãe de quatro filhos – o quinto vai nascer em quatro meses – e vive numa aldeia do Líbano. Trabalha como uma besta de carga, nas plantações ou cuidando das crianças. Livros de filosofia? Nunca mais. Romances franceses? Nunca mais. Beirute é chamada de “Paris do Oriente Médio”, tem sua própria festa móvel, mas Fátima não está convidada, não passa nem na porta.
A única vantagem é que Ahmed não a espanca, como acontece a tantas esposas jovens da região; no máximo, uns tabefes quando ela mostra um comportamento europeizado (na verdade, abrasileirado), alheio às tradições locais. Só levou uma surra de criar bicho uma vez, na primeira noite, quando ele descobriu que ela não era mais virgem. Hoje, ela considera o castigo merecido. “Homens bons e devotos, que fazem de uma quase meretriz ocidental a mãe de seus filhos, precisam impor disciplina”, diz sempre para si mesma. Amor? Não tem certeza, mas acha que não ama o marido, se é que um dia o amou. Em contrapartida, daria a vida pelos filhos.
A outra vantagem é que não tem de usar burka, muçulmanas do Líbano não se vestem assim. O pior é que sua família nem era muçulmana, e sim cristã ortodoxa, ela teve de se converter, deu uma trabalheira. Ter o rosto descoberto facilita as coisas, ajuda a enxugar as lágrimas. Fátima chora todos os dias, nem sabe por quê.