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Os guerrilheiros

Há males que vêm para o mal

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Há males que vêm para o mal. O relatado nesta história não é um deles.

No início de 1968, aos 21 anos, Lucas integrava uma organização política clandestina que havia optado pela luta armada. Nada de guerrilha urbana; o grupo era mais ortodoxo que freudiano fumando charuto, a ideia era montar um foco no interior do Brasil, segundo o modelo guevarista.

O “integrava”, no caso de Lucas, talvez fosse excessivo. Não que ele tivesse divergências teóricas com a organização, da qual era formalmente um dos dirigentes; e tampouco tinha medo de morrer: aos 21 anos, todos se consideram imortais. É que estava na maior fossa, em plena sofrência por um amor fracassado. Em tais circunstâncias, você não quer ir pra serra empunhando um fuzil, você quer ir a um botequim pra ouvir Lupicínio e tomar um porre.

Seja como for, o ainda militante Lucas foi procurado por um companheiro, um metalúrgico chamado Keize (um dos nomes de guerra mais estapafúrdios que o rapaz jamais ouvira):

– Companheiro Marcelo (era este o codinome de Lucas, bem mais prosaico do que o Keize), estamos organizando um grupo para treinar táticas de guerrilha em Bom Jardim. Você tem carro, se integre ao grupo e ajude no transporte. E é bom você dar uma treinadinha, pois começaremos a montar o foco em poucos meses!

Lucas/Marcelo achou estranho que se pensasse num foco na serra fluminense, mas, como seria apenas um treinamento – e a alternativa seria comparecer à faculdade de Direito, que ele detestava –, acabou topando.

No final, subiram a serra apenas três pessoas: Keize, Lucas e um militante que ele não conhecia, um mulato de codinome Chico.

-Vamos ficar na minha mãe – informou Chico. Ela trabalha numa fazenda em Bom Jardim.

Logo que chegaram, as visões de Lucas sobre o universo rural começaram a ser abaladas. Ele imaginava que seria necessário esconder o seu fusquinha e avançar cautelosamente, à noite, para o grupo não ser visto, mas acabou chegando pouco depois do meio-dia e parando bem perto da casa. E o seu não era o único carro junto às residências dos colonos; ele imaginava um nível de pobreza muito maior.

Foram calorosamente recebidos pela mãe do Chico, uma senhora negra muito simpática. E logo se embrenharam na mata para o treinamento. Portavam um fuzil calibre 22 e duas espingardas calibre 12 de pressão para caça, que disparavam projéteis de chumbo.

Em uma clareira, improvisaram um alvo e começaram a atirar. Lucas saiu-se bem.

– Companheiro, você atira bem pra cacete! Vai conosco para o foco! – exclamou Chico.

Lucas olhou-o como se o cara tivesse enlouquecido. Escolher um militante pela pontaria?

Keize e Chico também tentaram caçar (Lucas ficou só no tiro ao alvo), e um deles acabou derrubando uma ave pouco maior que um pombo, que ficou destroçada pelos projéteis de chumbo.

Ao regressarem, no cair da noite, levavam apenas os remanescentes da ave. A mãe do Chico limpou-a da melhor maneira possível, tentou descartar (sem muito sucesso) o chumbo e usou a pouca carne para improvisar um ensopado. Lucas descobriu, então, outro dado da realidade do campo: sal era artigo de luxo, usado em pouquíssima quantidade. Ele deu umas três garfadas, para não parecer grosseiro, porém mal conseguiu engolir a comida sem sabor. “Preconceito pequeno-burguês meu”, pensou. “Mas, preconceito ou não, está horrível!”

Os três dormiram cedo e, tão logo acordaram, tomaram um café bem ralo e foram para a mata. Desapareceram quaisquer referências a treinamento para a guerrilha. Chico confessou que estava com saudades da mãe e por isso sugerira a visita à fazenda. Lucas o admirou por abrir o jogo, e quase admitiu que não ia para a luta armada nem que a vaca tivesse acessos de tosse. E Keize…bem, ele estava se divertindo, gastando pólvora e munição com uma péssima pontaria.

Os três voltaram mais cedo, de mãos vazias (azar de Lucas, teria de encarar o ensopado outra vez). Antes do jantar, porém, Chico insistiu em mostrar-lhes o alambique da fazenda.

– Aqui é preparada a melhor cachaça de Bom Jardim – declarou com uma pitada de orgulho.

Se aquela era a melhor cachaça da região, pobres dos consumidores! O líquido menos destilado, destinado aos colonos, parecia um veneno à base de metanol e outros compostos tóxicos. Lucas, apreciador de aguardentes, virou o seu copo e quase explodiu. Lágrimas cobriram seus olhos, e talvez por isso tenha escapado de ficar cego. Keize não bebeu, pois era um marxista de família evangélica; apenas Chico sobreviveu, aparentemente sem sequelas, à dose arrasa-quarteirão.

Abalado pela cachaça e pela perspectiva de mais ensopado, Lucas sugeriu que fossem para Friburgo, onde seus pais possuíam uma casa. Jantariam num restaurante que ele conhecia e dormiriam na casa de veraneio, para regressarem a Niterói no dia seguinte. Conseguiram, com alguma dificuldade, convencer o Chico, despediram-se da mãe dele, recusaram delicadamente a oferta de um pouco de ensopado “para a janta”, entraram no carro e, barões assinalados, mas sem armas, foram para Friburgo. Às 9h15 estavam no restaurante, famintos e traçando três PFs, quando ELA entrou.

Ela era uma das musas da trajetória amorosa de Lucas. Era uma lourinha de olhos azuis, com quem ele flertava descaradamente nos bailes de carnaval em Friburgo. Tímido, ele a seguia com os olhos desde os 14 anos, sem se aproximar. Aos 16 anos (dele) e presumíveis 15 anos (dela), superada a timidez, olhavam-se famintos, como quem olha um prato de comida, mas, por algum motivo, continuaram sem conversar; tudo parecia mais excitante assim. Ele só a via nos bailes de carnaval, nem sabia se a musa foliã morava em Friburgo ou no Rio de Janeiro (de Niterói ela não era, tinha certeza). Depois descartara os bailinhos em clube, tivera outras namoradas, vivera o grande amor de sua vida, mas jamais esquecera a lourinha misteriosa.

A jovem sem nome entrou no restaurante com uma amiga, reconheceu Lucas, ensaiou um sorriso radiante – mas, no meio do caminho, mudou de ideia. Os músculos da boca primeiro congelaram, depois crisparam-se em um esgar de desgosto. Talvez por Lucas e seus dois companheiros estarem imundos e fedendo devido a dois dias de treinamento guerrilheiro sem banho. Ela comprou um maço de cigarros e saiu sem olhar para trás.

E assim terminou o ensaio guerrilheiro de Lucas. Recebera um convite de ir para a guerrilha por sua boa pontaria – um convite que jamais aceitaria –, não conseguira comer a carne da ave assassinada por seu grupo e quase morrera devido a uma talagada de cachaça raiz. E perdera mais um amor: sua segunda desilusão sentimental em poucos meses.

Mas, como foi dito no início desta história, nem todos os males vêm para mal. Tão logo chegou a Niterói, Lucas mergulhou nos botequins da vida, tratando sua dor de corno com generosas doses de boa cachaça e muito Lupicínio, como devia ter feito desde o início; e tratou de desligar-se da organização. Graças a isso, provavelmente escapou da prisão, pois seus companheiros foram todos entregues por um espião infiltrado. E nunca mais viu Keize, Chico ou a musa desdenhosa de lindos olhos azuis.

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