Pratos vazios
Corte no Bolsa Família soa como sentença de morte para nordestino
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No Nordeste, o Bolsa Família nunca foi apenas um número no orçamento da União. Ele sempre teve rosto, nome e endereço. É o feijão que não falta no fim do mês, o caderno do menino comprado fiado, o remédio garantido antes que a doença vire sentença. Quando os cortes chegam, não chegam como estatística — chegam como silêncio na mesa.
Houve períodos em que o programa encolheu. Não de uma vez só, mas aos poucos, como quem vai apertando o nó sem anunciar. Famílias que antes estavam cadastradas passaram a esperar. Esperar meses, esperar respostas, esperar uma visita que nunca vinha. No sertão e nas periferias das cidades nordestinas, a espera sempre pesa mais, porque o chão já é frágil.
Nessas fases de redução, o comércio sentiu primeiro. A venda miúda, o mercadinho da esquina, a feira livre de sábado. Quando o benefício diminui ou atrasa, o dinheiro deixa de circular, e o pouco que girava some. A economia local, que depende desse fluxo curto e essencial, engasga. O problema deixa de ser só social e passa a ser coletivo.
Para as mulheres nordestinas, sobretudo mães solo, os cortes do Bolsa Família foram ainda mais duros. O benefício era a linha fina que separava a dignidade da humilhação. Sem ele, voltaram escolhas cruéis: pagar a luz ou comprar o gás, levar o filho ao médico ou garantir o almoço. A pobreza, quando retorna, não pede licença — ela se impõe.
No campo, os impactos se espalharam em silêncio. Comunidades rurais, já marcadas pela irregularidade das chuvas e pela escassez de políticas públicas, sentiram o recuo como uma seca invisível. Não era a falta d’água, era a falta de renda mínima para resistir até a próxima colheita, até o próximo bico, até o próximo dia. Os cortes também afetaram a esperança.
Porque o Bolsa Família, para além do valor, carregava a sensação de pertencimento: a ideia de que o Estado lembrava daquele povo. Quando o programa enfraqueceu, cresceu o sentimento de abandono, velho conhecido do Nordeste, que sempre teve que lutar para provar que existe.
Ainda assim, o nordestino resistiu. Como sempre. Ajustou, dividiu, improvisou. Mas resistência não deveria ser política pública. Cortar o Bolsa Família em uma região historicamente vulnerável é como retirar o alicerce de uma casa já rachada. Ela pode até não cair de imediato, mas cada corte aprofunda a fissura.
Essa crônica não é sobre números cancelados em planilhas. É sobre pratos vazios, mercados vazios, dias mais longos e noites mais pesadas. No Nordeste, os cortes no Bolsa Família nunca foram apenas uma decisão administrativa. Foram, e ainda são, uma ameaça direta à sobrevivência de quem vive no limite entre a luta e a desistência.