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Sonho

Miles

Publicado

Autor/Imagem:
Castro Oliveira - Foto Francisco Filipino

Miles acordou frenético. Tinha vindo de outro mundo onde só se suspirava e ouvia jazz em cantos obscurecidos de bares nocturnos esclarecidos.

Foi como se tudo fosse… Uma contínua espiral de criatividade que não tinha fim no seu pensamento, cores, sons, misturados com doces, mulheres bonitas e um sol de Verão esplendoroso bem lá em cima do profundo céu azul.

Olhou da janela do seu apartamento, em High Tower 51, num nono andar em Flashing Street na cidade de Babel junto à parte pobre. Olhou da janela e viu subitamente nas ruas um espectáculo inominável.

Teria sido talvez de sonhar demais ou do chá estranho que bebera mas vira, literalmente, vira, milhares de formigas correndo nas ruas apressadas indo bem depressa para todo o lado em busca de alimento. Algumas eram de uma força desmedida, levavam carros enormes e luxuosos nas suas mandíbulas e subiam sobre as formigas mais pequenas que andavam em pequenos círculos fugindo delas. Outras agarravam em grandes quantidades de ouro e corriam para os montes construindo novos formigueiros enxameados de fiéis formigas vermelhas, robustas, que guardavam o local com olhar ameaçador mexendo as suas pequenas antenas em busca de intrusos.

Miles, esfregou os olhos, um odor a sonho transido como um fogo quente interior fizera o seu coração palpitar mais, mais, mais como se fosse explodir fervendo subitamente de insatisfação. E entrou numa doce comoção. Pegou no telefone e telefonou a Marta, sua companheira de quarto que andara fugida em Espanha em busca de paz e isolamento num retiro em Buitre, na Andaluzia desértica.

Sim, Marta? Olá, como estás? Sim, sim, está tudo bem por aqui. Tive um estranho sonho. Sim. Contigo e as festas do costume. Mas, mas, houve algo que não sei definir, uma espécie de… Sim, vi formigas na rua, alvoroçadas, a correr, algumas desempregadas, a correr, despedaçando-se umas às outras em busca de alimento. Sim, sim, foi real. Não, não, não estou no centro comercial, estou em casa, sim, parei de beber chá desde que foste embora para esse retiro. Buitre é um nome significativo. Achas que é um sinal? Talvez o governo. Não sei. Estás a ser bem tratada pelas chicas? No muchachos si? Tenho saudades tuas. De corrermos nus nas ruas à noite. De… Hei, que vês por aí? Aves de rapina circulando em redor bem no alto junto à estrada… Poético. Andas a sonhar com o governo outra vez? Está tranquila, Buitre vai-te fazer bem, alguma paz e isolamento é o que precisas, também eu, mesmo aqui imerso neste apartamento penso em ti Marta, a toda a hora, olha, o relógio da sala, o relógio da sala parou… Estou, estou? Desligou…

Miles sentia-se estranho como que vivendo num enorme cubo de vidro que o impedia de sentir o mundo, de tocar o mundo, de sorver o mundo. Estava só. Só, ouvindo o jazz melancólico que um amigo lhe emprestou em vinil.

O disco rodava e rodava e os sons eram sucessivas explosões de ondas de mar, de ventos selvagens gritando, de hordas de homens e mulheres fazendo amor algures numa ilha em Zanzibar ou açafrão…

Não!

Colocou a mão na cara para ver se ainda ali estava. Voltou à janela para ver através do vidro.

Milhares de formigas, em êxtase frenético de sobreviver, correndo e subindo umas pelas outras, subindo pelos prédios altíssimos onde formigas gigantes usavam telefones e davam ordens em berros altíssimos, outras nervosas e em círculos estavam gritando e protestando nas ruas de antenas vermelhas remexendo-se obsessivas e raivosas junto a um jardim onde morava a rainha, gorda e doce, uma velhinha de ar calmo, abanando levemente o abdómen e depositando ovos brancos que formigas zelosas pegavam nas suas pequenas antenas e distribuíam em sítios estratégicos pelo formigueiro inteiro, para que pudessem ajudar a missão da rainha de reinar em tranquilidade, paz e prosperidade.

Miles virou a cara da janela horrorizado e olhou o interior do seu apartamento.

Livros colocados nas estantes, alguns títulos de autores sonantes, viajantes no tempo como ele registando as suas viagens em pequenas letras para ler e enriquecer, em voragens sucessivas nas tardes quentes onde não havia mais nada a fazer a não ser… tudo ler.

Miles fez então uma nova analogia, ler um livro e ler o mundo ao mesmo tempo, sem pensar em nada, que estranho seria…

Quando acabava de ler um livro, o último fora sobre Jean Luc-Godard e a desconstrução da imagem, teve a sensação de que ele também era uma imagem dentro de uma imagem maior que era o mundo inteiro no seu interior num sol imenso sempre a viver.

Confuso não era?

Estranho talvez.

Ler o mundo era viver tudo, ler os livros todos seria conhecer apenas uma parte da biblioteca infinita que é a mente correndo aflita em busca de conhecimento que a console num vasto universo que lentamente, como uma cobra enroscada em si mesma, lentamente o engole e assim continua indefinidamente como um sonho que se arrasta livremente.

Miles pensou noutra coisa diferente, ligar a televisão, ser como toda a gente. Num zapping indiferente atravessou os cinco continentes e bocejou.

Quem me sou, quem me sou?

O telefone toca de repente e acorda-o de um sono esfoliante.

Marta? Sim. Sim. Como foi? Viste o quê? O teu próprio fim? Sem mim Marta? Sem mim? Como foste capaz? Como foste capaz?…

Miles deixa o telefone ligado, parado como um insecto de plástico, gritava Marta do outro lado, Miles, Miles, Miles…

Away…

Miles saiu do apartamento.

Hoje é uma formiga normal, um burocrata numa câmara municipal, pontual, dedicado, zeloso do seu posto no formigueiro, tem o retracto da rainha no seu quarto, ouve mal dizem, talvez do excesso de televisão e das discussões com a sua terceira mulher e os seus nove filhos, todos formigas zelosas e laboriosas, vive num apartamento maior em Herd Street, é feliz, esqueceu de viver.

Miles acordou frenético um dia.

Que sonho mau fora aquele que o trouxera para ali, para aquela vida dentro do formigueiro?

E uma suave música o conduziu, num transe que o suave sol o induziu, para dentro de um novo sonho onde subitamente a realidade partiu. E ficou o disco de vinil a girar e a girar, a girar indefinidamente…

E Miles subiu ficando só em corpo presente. Vive agora atrás do sol no paraíso da universal mente.

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