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OS LADRÕES

A Conta que Nunca Fecha

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

(CONTÉM CENAS DE VIOLÊNCIA)

Eu, meus irmãos, meus pais, todos morávamos na fazenda. A casa era do Doutor Abílio. Mentira, foi do pai dele, Coronel Malvino, depois ele é que tomou conta. Teve contenda com um irmão dele, o Flávio, mas levou a melhor. Ficou mesmo com tudo. Casou com uma moça na cidade e voltou pra lá quando o Coronel Malvino ficou doente. O coronel morreu um tempo depois, e ele entrou a morar mesmo na casa. Sozinho com a esposa. Depois é que vieram os filhos. Eu lembro pouco dessa primeira época. A casa da fazenda ficava numa subida. Num morrinho. De lá você via tudo embaixo, até onde a vista não alcançava mais. A gente morava num lugar logo perto da entrada da fazenda, que o pessoal chamava de avenida. Tinha, perto da nossa casa, o postinho médico, que de vez em quando abria, e um armazém onde meu pai comprava as coisas pra casa e anotavam num caderninho. Lá em casa éramos seis irmãos, meu pai e minha mãe. Eles trabalhavam pra diabo e o dinheiro nunca chegava. A gente sempre estava devendo mais no caderninho do que o pai e a mãe ganhavam trabalhando na roça. A conta nunca fechava. Um dia, ouvi meu pai reclamando para o Perácio, que era o administrador da fazenda. Ele disse que o problema do meu pai era o cigarro e a cachaça, e que, se ele quisesse conferir o caderninho, precisava esperar o Doutor Abílio chegar da capital. Nesse tempo, ele só ia pra fazenda mais no final de semana, não morava lá porque os filhos já estavam estudando em colégio bom, e não tinha nenhum na cidade e nas redondezas. Mas o tal Perácio disse que parecia falta de confiança no patrão, e que ele não gostava de gente desconfiada, que era deslealdade. Eu não sei se aquilo era ideia do capataz ou tinha sido o patrão que mandou falar. Aconteceu do meu pai baixar a crista e não tocar mais no assunto. Depois, ficou doente, acharam que era do fígado, custou a ver médico. Não durou um ano e também morreu. Foi um tendepá lá em casa, minha avó veio até morar com a gente, ficou um tempo, mas ajudava pouca coisa, já estava velhinha.

Um dos filhos do Doutor Abílio, chamado Márcio, veio morar na fazenda. Não sei bem por que, mas disseram que ele tinha saído fugido de um lugar onde ele já fazia faculdade, teve algum problema, se desentendeu com um rapaz e, na briga, matou ele. Não sei se era verdade, era o que o povo dizia. E ele ficou lá, morando na mesma casa que tinha sido do avô e do pai dele. E ele era que mandava no Perácio, colocou ordem nas coisas que pareciam que estavam muito frouxas. Um dia, a gente estava em frente de casa, na avenida. Minha mãe tinha saído pra lida, minha vó ficava deitada, e ele passou com um Fusquinha vermelho. Parou lá e veio perguntar quem era aquela moça toda bonita que estava sentada na calçadinha. Era minha irmã, Laura, que chamávamos de Lalinha, e era a maior de nós seis. Devia ter uns dezessete anos nessa época, e o Márcio ficou se engraçando. Todo dia passava lá, queria falar com ela, mandava chamar se ela estivesse lá pra dentro. Eu chamava. Lalinha era linda. Minha mãe dizia que tinha cara de moça de boa família. Que havia de se destacar na vida. Era raro ver uma menina como ela, os cabelos pretos cacheados, os ombros largos, um rosto bonito. Um porte diferente mesmo. Márcio tinha uma cara de bobo. Ele, mais de uma vez, entrou comigo na venda e me deu doce, me deu pirulito, refrigerante. Aceitei da mão dele mesmo. Eu era criança, e gostava. E, enquanto eu me refestelava nos doces, ele colocava a mana dentro do Fusca e saía para dar uma volta. Mas aí, um tempo depois, eu vi que tinha algum problema dentro de casa, que minha avó e minha mãe andavam brigando muito, um dia vi elas duas gritando com minha irmã, e ela saiu correndo, chorando. Eu não entendi nada. Depois é que fui saber que minha irmã ia ter um neném, e eu fiquei pensando como é que ia ter neném se nunca tinha casado. Eu só via as moças terem filho depois de casar, tinha sido assim com a Terezinha, uma vizinha nossa que era até madrinha de um dos meus irmãos, era muito boa. O Perácio veio uma vez dizer pra gente que o Doutor Abílio ia lá, pessoalmente, conversar com minha mãe, que na hora não estava. Uns dias depois, eu voltava do grupo, onde eu já estudava, e encontrei eles na sala de casa, minha mãe estava uma fera. Eu continuava sem entender. Minha irmã viajou com o Doutor Abílio, ficou um tempo fora da fazenda, e voltou com a neném, minha sobrinha. Aquela criança era um raio de sol na nossa casa. Eu ficava um tempão cuidando dela, adorava ver ela rir. Era um brinquedo. Muito bonitinha. A vó, que virou bisa, até remoçou ajudando com ela. Mas minha irmã ficou pouco tempo, e depois foi embora e não voltou mais. Deixou a menina. Levei tempo pra descobrir o que tinha sido feito dela, coitada. Endoidou, ou ficou triste de vez, não quis mais morar com a família. Eu vi que minha mãe ficou muito chateada, mas segurou tudo nas unhas, e a gente viveu uns anos lá, foi crescendo. Depois, o Márcio saiu da fazenda também e demoramos a ouvir falar dele.

Meu irmão mais velho, abaixo da Lalinha, era o Tino. O nome dele era Cristino, mas todo mundo o chamava de Tino. Ele disse que, um dia, ia pra cidade buscar nossa irmã, e que minha mãe não ficasse chateada não, ele dava um jeito nas coisas, e que se vingava de quem tinha feito mal a ela. Na minha mente eu não conseguia compreender o que ele estava falando. Mas ele dizia isso e dava água nos olhos dele. Minha mãe dizia pra ele parar de falar nisso, e amargava. “A gente é para o que nasce”. Que ele calasse a boca, que não ia fazer diferença nenhuma mais. Cresci e só depois entendi a raiva dele.

Mas passaram uns anos, o Perácio, administrador, teve um inchaço nas pernas e não trabalhava mais, ficava só, numa casinha no caminho pra serra, porque a mulher tinha largado dele. A fazenda caiu muito, declinou com o tempo, acho que a família dos donos andou cansada daquilo tudo, e nem ia mais passar as férias lá. A casa, em cima do morrinho, ficava a maior parte do tempo fechada. E meu irmão, um dia, veio com a ideia da gente entrar lá e pegar as coisas, pra vender. Eu era garoto, tinha uns 14 anos, mas já desconfiei que aquilo era errado. “Tino, não faça isso, se a mãe descobre vai descer o pau na gente”. E ele não se importava, nada tirava da cabeça dele, queria entrar na casa, pegar as coisas. E me falou dos planos. Ia entrar, de madrugadinha ou no início da manhã, porque sabia que não ia ter ninguém tomando conta. Tinha um ronda, que passava logo depois da hora do serviço, vinha sempre com um cachorro, mas ele não ficava até o dia clarear e, depois, só teria movimento umas sete da manhã. A gente entrava, ia pegando as coisas de vagarinho, escondia no galpão velho, que ficava do lado da venda e estava abandonado, e ia, depois, dando um jeito de vender. O dinheiro podia ser bastante, havia objeto importante na casa. Prataria, coisa antiga. Dava uma grana boa. E eu sempre resisti, não queria. Meu irmão forçava a barra, que só podia contar comigo e que, se eu falasse pra alguém, metia uma bala na cabeça e ia ver só como a mãe ia morrer em seguida. Eu ficava apavorado, mas, depois de muito negar, eu concordei em ir com ele. Fiquei espantado com a facilidade com que ele abriu uma porta perto da cozinha e conseguiu entrar na casa, que há muito tempo andava desabitada. Com certeza ele tinha ido muitas vezes antes ali, estudou cada pedaço, observou cada janela, cada porta, o modo pelo qual ia entrar e se mover lá dentro, no escuro. E fizemos isso umas três vezes, eu ficava apavorado. Levávamos um saco de estopa e íamos guardando as coisas dentro. Umas coisas de metal, que tiramos da sala, coisas menores que achamos nos quartos. Nem sei como é que faríamos para esconder aquilo muito tempo, e também não queria imaginar a gente com que Tino estava metido, que ia comprar aquilo tudo. Demorei a descobrir. Foi um trabalho longo, sempre repetido. Depois da terceira vez, não estava mais apavorado, e cheguei a perguntar uma vez a ele, quando deu a hora de ir dormir, se naquela madrugada ia ter excursão. Ele falou que sim, mas disse, de novo, que ninguém podia saber.

Aquelas miudezas que tiramos da casa renderam um dinheirinho. Tino deu a parte que me havia prometido. A maioria ficou com ele mesmo. Ele disse que eu era criança, e que ele precisava receber mais, porque ia para a cidade buscar reparar o que haviam feito com nossa irmã. Umas peças de selaria antiga, uns castiçais, um boneco de biscuit, os enfeites da velha que era mulher do coronel, umas bolas de vidro que ficavam penduradas nas lâmpadas. A gente entrava e pegava mesmo. Ninguém dava falta, a casa ficava vazia. Acho até que começaram a desconfiar, pois alguém pode ter entrado lá para limpar, ou pra pegar alguma coisa, não sei ao certo. O fato é que, um dia, souberam.

Um dia, era tarde de domingo, o Tino disse “vamos na casa agora, preciso conseguir alguma coisa”. Não dava, era ainda claro, alguém veria. E ele “não vão ver nada, ninguém mais liga praquilo, a gente vai e volta rápido, eu entro sozinho e você fica vigiando”. Eu não queria, sabia dentro de mim que ia dar errado. E ele, confiante, disse que não daria errado não, sabia o que estava fazendo. Eu, temendo a nossa ruína, pedi, implorei para o Tino não fazer aquilo, e ele estava resoluto, disse que iria sozinho e, se descobrissem, a mãe ficava sabendo e ia ficar magoada com a gente pra sempre, e, indo junto, um acobertava o outro. E eu fui. Fomos o caminho todo em silêncio e não vimos ninguém. Só o velho Tião, um carroceiro, aquele verme, não sei se foi culpa dele, nunca vou saber. Sei que ele não gostava do meu pai quando o velho era vivo. Fomos, Tino e eu, e chegamos lá no topo. Fazia frio. Entramos, fácil como sempre. Ele vasculhou tudo. Primeira vez que a gente entrava lá para pegar as coisas e estava tão claro. Eu me espantei por ver como tudo estava abandonado, triste. Gasto. Era uma casa de tempos passados.

Foi justinho naquele dia, quando a gente estava no segundo andar, olhei para uma janela do lado e vi, lá embaixo, um movimento estranho. Chegava um carro novinho, azul claro, seguido de um jipe cheio de capanga. Não entendi até hoje se foi coincidência, se eles estavam esperando, ou se chamaram eles. Chamar não, não ia dar tempo. Eles deviam era estar esperando mesmo, avisados, de atalaia, deviam estar em algum lugar ali perto. Mas eu fiquei pensando, porque, justo naquele dia, em que o Tino resolveu ir mais cedo, eles apareceram do nada. Só sei que quase mijei nas calças quando vi os carros indo em direção à subida do morro. Soltei um grito e meu irmão veio ver o que tinha acontecido. Comecei a desesperar. E ele falou “não liga, deixa que eu resolvo, só abre essas janelas aqui do lado e fica aqui em cima, desce quando eu te chamar”. Não entendi nada. A gente tinha era que correr, sair dali o mais rápido possível, voltar pra nossa casa na avenida. Mas não daria tempo. O único caminho de volta era a estradinha que levava ao morro, o capim estava seco naquela época, ia ser difícil eles não verem a gente. A parte dos fundos não ia dar pra descer. Esconder ali, pior, acabavam nos achando e íamos pra cadeia, ou pro cemitério. Eu apavorei, agarrei a tremer, desandei a chorar, pensei o que seria de mim, ou do Tino. Pois meu irmão, em vez de medrar, ficou na frente da casa, esperando que nem dono, com um pedaço de pau na mão. E, não demorou muito, os homens chegaram. Do carro azul claro saiu o Doutor Abílio e o Márcio. Do outro, só capanga muito mal-encarado. Como os donos da fazenda estavam mudados! Fazia um tempo que não os via. O doutor, certamente, estava doente. Mas com aquela feição dura de sempre. O Márcio foi que falou “o que é que você está fazendo aqui?”. E eu, de onde estava, ouvia tudo. Meu irmão respondeu “se eu chegasse antes, acho que ainda pegava eles pro senhor”. E eu não entendia. Pegava quem? A artimanha dele… Fez os homens acreditarem que, pouco antes, víramos vir alguém das bandas da casa grande, e que subimos o morrinho pra ver o que se passava. Chegamos lá, topamos com a casa arrombada e as janelas do lado abertas. E ele pegou um pedaço de pau e entrou na casa, com medo do que ia encontrar lá, de ter gente estranha, e demos busca em tudo que foi canto, e não encontramos ninguém. Que ia me chamar, pois, ainda assim, estava com medo de eu ficar sozinho lá dentro e sofrer alguma maldade. Ele me gritou e eu desci. E ele ainda teve a presença de espírito de dizer “olha, o mano ficou tão assustado que até se treme”. A cara deles era desconfiança, ou só dúvida mesmo. Certeza eu posso garantir que eles não tiveram de nada. Temi que iam matar a gente ali mesmo, não conhecia aqueles capangas. Só sei que o Doutor Abílio mandou a gente ficar calmo, que estava tudo bem, agradecia muito o empenho, estava entendendo tudo. Mas achava que, para nossa própria segurança, não era bom mais que ficássemos morando ali. Que nos daria um prazo de três dias para sairmos. Não, a mãe e os outros irmãos não precisavam ir. Até porque, a mãe tinha dívida com ele. Nós dois devíamos ir embora. Três dias. E foi outra gritaria lá em casa. “Que velho odiento”, disse a mãe, chorando. A vó, nesse tempo, já andava meio alheia, fraca das ideias. Não dava mais opinião. Eu pensei o que seria de mim, de nós, da mãe e da vó que ficariam sozinhas com os irmãozinhos e a filha da Lalinha, que nesta época já era uma garotinha brilhante, cheia de gênio.

Não tínhamos quase nada pra ajuntar na hora em que partimos. Ao menos, ainda salvamos um dinheirinho das coisas que tomamos da casa dos patrões. Naqueles dias, não sobrou nada pra vender. Fomos a pé, pela avenida, sem olhar atrás de nós. Algumas poucas pessoas ficaram sabendo da nossa partida. O que viria a ser era, ainda, um mistério. É claro que nos arranjaríamos. Tínhamos que nos arranjar. Tantos já haviam saído daquela fazenda triste, parada no tempo, e deram coisa boa. O Henrique, filho do Noé, virou motorista de caminhão. O Manuel Tenório, que matava gado, virou empregado de açougue. A Emília, filha do Ladislau e da Cotinha, tinha arrumado trabalho de costureira. O Agassis era garçom de restaurante. Acho que, se o pai não tivesse morrido, a gente também teria ido embora do mesmo jeito. Só que mais seguro de si. O fato é que tínhamos de ir, sem voltar. Ir sem pensar em retornar, porque as palavras do patrão ainda estavam nos nossos ouvidos. Para nossa própria segurança, não era bom mais que ficássemos morando ali. E depois de muito tempo foi que eu entendi. Eles não caíram na história que o mano inventou. Sei lá se na hora, ou se antes. A nossa segurança era garantida se a gente desse obediência aos mesmos homens que podiam nos fazer mal, por meio dos capangas. Uns camaradas horríveis, que eu nunca tinha visto a fuça deles. Fomos da porta de casa até a avenida, da avenida até a porteira, da porteira até a estrada, da estrada até a estação, quando o trem já apitava. Chegamos na cidade era já de noite. Não sabia direito o que fazer, Tino haveria de ter pensado alguma coisa. E pensou. Estávamos numa rua muito comprida, iluminada a eletricidade, procurando uma casa. Tino tinha um papel com o endereço escrito. Paramos em frente a um sobrado, meio arruinado. Tino assoviou. Lá de cima apareceu Lalinha, nossa irmã. Ela foi meio indiferente. Estava mudada. Rosto pintado, usava um cordão com umas bolotas, brincos estranhos. Um vestido justo, que a mãe certamente não deixaria ela usar. Tinha a cara cansada, desanimada.

Dormimos lá e fomos ficando alguns dias. Algumas semanas, alguns meses. Tino deu de trabalhar num botequim no qual Lalinha o levou e apresentou ao dono. Eu passei a vender balas, chicletes e outros doces nas redondezas do bar onde Tino foi trabalhar. Começava de noitinha e só voltávamos para casa na alta madrugada, quando o expediente terminava. Às vezes, chegávamos e não podíamos subir as escadas que levavam ao apartamento pequeno em que nós três repousávamos os esqueletos cansados. É que Lalinha tinha visita. E ela não gostava que a gente visse a visita sair. Passamos assim dois anos, e o Tino sempre pensando em mudar de emprego. Até que, um dia, conseguiu. Foi através do Agassis, nosso chegado lá da fazenda, que ele passou a trabalhar de garçom em restaurante. Era melhor que no botequim. Não tinha que ajudar com os pinguços, nem limpar banheiro imundo madrugada adentro. E eu tinha arrumado uma posição na faxina de um prédio no centro, cheio de escritórios. Saímos da casa de Lalinha e fomos morar perto do restaurante onde Tino trabalhava. Ele ficava lá das onze da manhã até umas oito, nove da noite. Fim de semana, ficava até mais. Às vezes, no fim do expediente, eu ia até lá, esperava nos fundos e ele me arrumava um prato de comida. Sempre comida bem-feita, gostosa. Voltávamos para casa já jantados. Era bom, gostava dessa rotina. Algumas vezes, ficava triste, sentia falta da mãe, dos outros irmãos. Ficava pensando se não estava faltando alguma coisa pra eles. E não podíamos voltar. E, nessas horas, eu detestava minha vida, que era uma desgraça completa. Pobreza, trabalho, lixo, limpando merda de gente desconhecida naquele prédio de escritórios. Humilhação que não acabava. Não sei o que se passava na cabeça de Tino, mas ele deu para beber. Bebia e ficava transtornado. Disseram que até resto do copo dos fregueses ele tomava. Lalinha eu via pouco. Não gostei da indiferença com que ela me tratou quando estávamos na casa dela. Volta e meia a gente se cruzava, mas era raro. Depois, ela pegou doença do mundo e ficou mal, quase à morte. Aí a gente foi socorrer ela, que ainda estava morando no sobrado velho. Fiquei ali, observando aqueles dois irmãos, sangue do meu sangue. E reparei como eram pessoas tão diferentes das que eu conheci. Mal via neles os laços que nos prendiam. Acho que eu havia crescido, e não me sentia mais tão dependente, ou tão pertencente àquele grupo. Mas ainda pensava e tinha no coração as pessoas que ficaram na fazenda.

A vó morreu naquela época, e o Tino descobriu que estava doente do pâncreas. Tempos antes, ele juntou com uma moça, até muito boa, e ela cuidava dele e da casa. Eu passei a morar só, e Tino montou um canto pra ele e a mulher. Se davam bem. Ele piorou rápido e morreu também. Coitado do meu irmão. Ainda conversou comigo uma vez e disse que me arrastou pra desgraça. Eu disse “bobagem, tudo bem, não sinta culpa”. E foi a conta de nos falarmos, e ele não falou mais com ninguém. Começou a apagar até o fim.

Estava eu mais sozinho que nunca, naquela cidade hostil, cheia de sujeira, de pinguços e de putas. Pensei em voltar pra fazenda. As coisas certamente haviam mudado lá, mas também não queria. Que se danasse a fazenda. O certo era ver quem restava e, talvez, trazer para a cidade. Ao menos não definhariam naquele rincão perdido, isolado. Aqui, apesar da merda, da cachaça e das putas, havia vida.

Na verdade, eu não sabia mais o que fazer. Qualquer coisa para mim era ruim. Ficar ou não ficar. Estar ou voltar. Eu queria era fugir de quem era. Fugir da história da minha vida. Mas como?

Depois da morte de Tino, um tempo mais, acabei arrumando emprego no mesmo restaurante onde ele trabalhou. Primeiro, na faxina. Depois, comecei a fazer uns bicos de garçom quando a casa estava cheia. Até que fui contratado. E era bom no que fazia. Conseguia ser simpático com os clientes. Ganhava boas gorjetas. Era asseado e atento. Ganhei a confiança do dono.

Houve uma noite em que, numa das mesas atendidas por outro colega, vi uma pessoa que reconheci na hora, apesar de anos mais velho e uma careca que começava a aparecer. Pensei que aquilo não era possível e perguntei aos outros garçons. Um deles me disse que era ele mesmo, um médico famoso por ali, muito prestante. Pois era Márcio, filho do Doutor Abílio, que já havia abotoado o paletó há tempos. Estava com uma mulher do lado dele. Eita mulher bonita, uma danada de uma morena esguia, desempenada, falando pelos cotovelos. Eu fiquei ali, perto do balcão, observando, até que resolvi ir perto dele. Mas ele não me reconheceu. Eu perguntei “precisa de alguma coisa?” e ele fez que não com um gesto, agradeceu. Aí eu falei “como vai, Doutor Márcio?” Ele, com cara de dúvida, disse que ia muito bem, obrigado. E eu provoquei dizendo “o senhor não lembra de mim?”. Como a cara de dúvida aumentou, eu disse que era tio da filha dele, e perguntei se ele também não se lembrava da Lalinha. Ele ficou com uma cara transtornada e disse que eu era maluco. A morena que o acompanhava parou de falar pelos cotovelos e achou estranho. Ele chamou o outro garçom e pediu a conta, disse que estava sendo muito mal servido e se sentia incomodado. O gerente percebeu aquele movimento e foi ver o que acontecia. Eu disse que nada, eu devia ter me confundido de pessoa. Dissimulei e fingi naquela noite. Mas a cara de cão do desgraçado não me saiu da lembrança. Médico famoso. Então tinha feito medicina aquele bosta. Pois eu havia de levantar a ficha dele. Nos dias seguintes, antes de trabalhar, eu perguntei aqui e ali e descobri tudo. Era médico sim, voltara à cidade e clinicava num lugar muito chique. Cuidava do coração das pessoas. Pois eu é que devia cuidar do meu coração. Deixei uma larva de ódio se instalar ali dentro e ela cresceu, ocupando cada oco, cada curva, cada lugarzinho. Fui pensando que era por causa daquele nojento que acontecera tudo que passou, a mim e aos meus. E ele ali, se divertindo no restaurante, com uma morena desempenada, bebendo uma birita da melhor qualidade. Fiquei louco de ódio e pensei no que faria. Nas folgas, rondava o lugar onde ele trabalhava, e diversas vezes o vi chegando ou saindo num carrão preto, enorme. Bem diferente do Fusquinha vermelho com que ia fustigar a decência de Lalinha. Cidadão condecorado, respeitado, relevante. Tudo não passava de um embuste, aquele homem era um salafrário. Um salafrário.

Ele não devia ter carro, nem casa, nem morena, nem coisa nenhuma. Causara uma desgraça em sequência, e tantas lágrimas minha mãe chorara por causa daquele bandido. Ele havia de ver.

Ele jamais voltou no restaurante, mas eu manjei bem a rotina do malandro. A cidade era grande, mas não tanto a ponto de eu não conseguir descobrir onde ele morava. Perguntando-se aqui e ali, fazendo as amizades certas, não foi difícil. Em pouco tempo, percebi a hora em que ele entrava e saía do consultório, não raro acompanhado da morena que também trabalhava lá, só não sei se como médica ou qualquer outra coisa. Não me interessei mais em acampanar o sujeito no trabalho. Fui me acercar da casa dele, ver o que conseguia. Era uma casa boa, térrea, meio de um terreno grande, muro baixo, grade nas janelas. Mas havia portas. E, depois de lembrar de observar como o mano fazia, não me foi difícil arrombar uma delas e me sentar ali, no escuro, esperando, depois de me certificar, observando por dias, que àquelas horas, a casa permanecia completamente vazia. Ele gostava de sair do consultório e zanzar em restaurantes, beber seu uisquezinho, contar vantagem para a morena e, depois, ir para casa. Pois, numa dessas vezes, o casal me encontrou bem na sala quando entrou e acendeu a luz. A mulher deu um grito. Ele, covarde, deu outro, e perguntou, hesitante, “o que você está fazendo aqui?” E eu disse que precisava acertar umas contas, conversar com um parente saudoso. “Saia ou eu vou chamar a polícia”. Disse que não ia, e ordenei que a mulher, a esta hora preparando um escândalo, calasse a boca. Claro que não fiz nada disso de cara limpa. Havia bebido todas, e me certifiquei de garantir a macheza segurando uma porcaria de um revólver de ladrão, que um antigo amigo dos meus tempos de vendedor de balas e doces me conseguira alugar por uns trocados. Amarrei os dois sob a mira do revólver. Dei uma cacetada na cabeça da morena, para que ela parasse de gemer e sentir medo. Apaguei ela com o golpe, temi até tê-la matado, mas depois vi que respirava. Para o Doutor Márcio reservei tratamento mais radical. Cortei-lhe algumas partes, enquanto ele chorava, gemia e, de vez em quando, desmaiava. E, quando isso acontecia, eu o acordava jogando-lhe álcool naquela cara amedrontada e que não conservava virilidade nenhuma. Ele era desses cuja macheza ficava com os capangas. Sozinho, não valia nada. Era só um bebê chorão. Como ele muito sangrava e sofria, fiz-lhe logo um furo no meio dos olhos num desses desmaios. Fiquei ali bem uns quarenta minutos olhando minha obra e finalizei também a morena, porque não queria testemunha do meu malfeito. Não contava era com a desgraçada de uma vizinha que, tão tarde, tinha insônia e dera para olhar pela janela, justamente na hora em que eu entrava pela porta lateral. Achando estranho, ficara observando de vez em quando. Ela disse, depois, que escutou qualquer coisa ou viu umas silhuetas suspeitas projetando sombra numa cortina da sala, e acabou, na dúvida, ligando para a polícia que, se houvesse chegado mais cedo, até haveria de salvar pelo menos a morena.

Agora, cá estou eu. Curtindo esta cadeia, não sei bem até quando. Aquele promotorzinho de uma figa. O advogado que mal olhava na minha cara, deve ter me defendido de má vontade porque sou pobre e ele não ganhou nada. Os jurados foram implacáveis comigo. Queria ver é se seriam implacáveis se fosse o doutorzinho rico e prestante que estivesse sendo julgado. Rico e prestante… um nojento, isso sim.

…………………

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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