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O troféu

A Corrida do Centenário e o paradoxo da caipirinha

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Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Produção Francisco Filipino

Ainda mantenho o saudável hábito de correr/caminhar, mas há alguns anos, tal atividade era uma parte mais do que central na minha vida cotidiana.

Eu praticava o chamado “jogging” (denominação inglesa adotada no Brasil nos anos 70 para sofisticar a corrida de rua) no mínimo três vezes por semana. Todos os meses eu também participava de pelo menos uma corrida de rua – dessas tipo “São Silvestre”, sem o glamour da mesma – e, sempre que possível, também curtia participar do internacional e tradicionalíssimo evento esportivo paulistano de fim de ano.

Evidentemente, como todo corredor amador, as minhas ambições no evento se limitavam a cruzar a linha de chegada, receber a medalha de participação e, se possível, melhorar o tempo de corrida. Assim, preservava a saúde, mantinha a boa forma e ainda curtia a emoção do desafio.

Quando comecei a praticar a atividade, tive a sorte de conhecer um casal já experiente na lide corridística: Beatriz e Beto. Eles já eram corredores “amadores-profissionais” há algum tempo e, a cada corrida que fazíamos juntos, mais orientações e dicas valiosas me passavam.

Ambos são professores universitários da área de humanas e, em função dessa e de outras afinidades, ficamos amigos de frequentar a casa uns dos outros.

Em algumas ocasiões, antes do dia terminar, enfrentávamos mini-maratonas com as pernas e, à noite, completávamos maratonas inteiras com a mente, discutindo e dissecando questões políticas-filosóficas-literárias pautadas pela conjuntura do momento.

Naquela semana, estávamos nos preparando para a corrida “Desafio Mizuno/10 milhas” que aconteceria no entorno do Parque Ibirapuera.

Esse, para nós, seria um evento ainda mais especial do que os outros, porque selaria a marca de cem corridas da Bia e do Beto e, por coincidência, a metade disso para mim, ou seja, cinquenta conquistas no meu ainda modesto currículo de corredor.

Entrementes, o destino me colocou em uma sinuca de bico. No sábado que antecedia o domingo da “corrida centenária”, estava marcada em minha agenda a comemoração do aniversário do Marcelo, meu chefe e amigo.

Faltar, nem pensar!

Mas eu também sabia que não poderia demorar muito tempo na festança, caso quisesse estar em condições de enfrentar o desafio da Mizuno às oito horas da manhã do dia seguinte, juntamente com meus queridos amigos.

Planejei chegar bem no início do níver, às 22 horas, dar um abraço no Marcelo, tomar uma coca-cola com gelo e limão, bater um rápido papo com os amigos e, logo depois, cair fora à francesa. Mas, quis o diabo que a estrela da festa fosse o meu ponto fraco: caipirinha de vodka, a melhor que eu já tinha tomado, em função da irresistível insistência do Marcelo. Aí minha concentração estoica estatelou-se no chão e não teve disciplina espartana que resistisse à tentação, bebi a primeira, a segunda, outra, depois mais uma… e, quando me dei conta, já em estado de semi-consciência, eram duas horas da madrugada.

Cheguei em casa de táxi, lutando contra uma proverbial ressaca e um imenso complexo de culpa. Como perguntaria Lênin – o que fazer agora?

Dormir e depois tentar acordar na hora necessária? Tomar um café e ficar acordado? Desistir da corrida? Sem muita convicção, optei por uma solução intermediária pouco científica: tomar um café, colocar o despertador para as seis horas e apagar sentado no sofá. Havia combinado com Bia e Beto que eles passariam no meu prédio às sete horas para me buscar.

Lembro vagamente de calar o despertador quando ele tocou e, logo depois, ter voltado a dormir. Acordei novamente mais tarde com o toque do celular. Era Bia avisando que ela e Beto já estavam em frente ao prédio me aguardando.

Falei para ela que não estava passando bem e que não poderia correr naquele dia. Com seu habitual tirocínio mais que certeiro, Bia, que sabia da minha agenda na noite anterior, entendeu tudo. Ela disse – em tom que não admitia réplica – que eles não iriam sem mim e que estavam subindo para me buscar.

Contrariando heroicamente a minha vontade de voltar a dormir, consegui com imenso esforço vestir a indumentária de corrida.

Tomei mais um fortíssimo café e comi uma suculenta torrada, ambos preparados pela amiga. Ainda relutante, reuni forças para acompanhar o casal até o carro. Lembro que o Beto mandou eu tomar uma bebida energética de sua lavra, garantindo que isso iria me ressuscitar em minutos.

Quando dei por mim, ainda meio zonzo, estava com o casal amigo na linha de largada da corrida. Eles falaram que era para eu ir devagar, que iriam ficar ao meu lado o tempo todo e que, mesmo que isso demorasse, cruzaríamos os três juntos a linha de chegada.

Não sei se foi a auto indignação com a besteira que fiz no aniversário do Marcelo, o medo de passar vergonha e dar vexame na frente dos amigos, a minha genética “metade índia”, a força espiritual de Hermes (o mensageiro dos deuses) ou a infusão-energética do Beto, o fato é que, dada a largada com a tradicional sirene soando majestosamente nos ouvidos da multidão de corredores, senti uma inacreditável energia cósmica tomar conta de todo o meu ser. Parecia que os meus pés tinham asas e que a dor de outras corridas, inerente ao esforço de mover as pernas contínua e rapidamente, não passava de uma lembrança distante.

Surpresos, Bia e Beto tiveram que se desdobrar para acompanhar meu ritmo durante o trajeto. E não é que alcançamos a linha de chegada em tempo recorde em relação a nossas marcas anteriores?!

Terminada a aventura com aquele surpreendente final feliz, fomos merecidamente receber as medalhas de participação no evento, recompensa reservada para quem conclui a prova em um determinado tempo máximo estipulado pela organização.

Já com o precioso troféu no pescoço, nos entreolhamos um tanto incrédulos e, para a curiosidade dos outros corredores que estavam em volta, começamos a rir copiosamente após Beto afirmar que o segredo do meu excepcional desempenho não devia ser o café forte da Bia e nem o “redbull” que ele me deu, mas sim a irresistível caipirinha do Marcelo.

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