Vila de São Bento de Sapucaí
A Costura das Sete Vidas
Publicado
em
Na vila de São Bento do Sapucaí, onde a neblina desce da serra como um véu de noiva, havia uma casa de taipa com sete janelas. Cada janela pertencia a uma mulher. Cada mulher carregava uma história que não cabia em livros, mas que, juntas, costuravam o tempo.
A primeira janela era de Dona Zefinha. Aos 92 anos, ela ainda fiava algodão com os dedos tortos. Contava que, em 1942, quando o marido foi levado pela guerra, ela sozinha criou sete filhos e um pomar de jabuticabas. “A fome ensina”, dizia, enquanto o tear batia como coração. Ninguém sabia, mas foi ela quem escondeu três famílias judias no sótão durante a ditadura. As jabuticabas viraram moeda de troca. A vida, salvação.
Na segunda janela, Lúcia, a parteira. Mãos de terra, olhos de lua. Entregou mais de mil crianças, inclusive a própria neta, que nasceu com o cordão enrolado no pescoço. “Puxei a morte pelo cabelo”, contava, rindo. Nunca cobrou um parto. Em troca, ganhava ovos, feijão, um rádio quebrado que consertou com arame. Quando a enchente levou a ponte em 69, foi Lúcia quem amarrou cordas entre as árvores e atravessou grávidas nas costas. A vila inteira nasceu de novo nas suas mãos.
A terceira janela pertencia a Maria do Rosário, a professora. Analfabeta até os 30, aprendeu a ler com os filhos dos outros. Virou mestra. Ensinava debaixo de uma figueira, com giz roubado da prefeitura. “Letra é escada”, repetia. Uma aluna sua, hoje juíza em São Paulo, manda carta todo Natal: “Senhora, a senhora me deu asas.” Maria guarda as cartas numa caixa de sapato, junto com o diploma que nunca teve.
Na quarta janela, Joana, a louca. Assim a chamavam. Dançava nua na chuva, falava com os passarinhos. Mas foi ela quem, em 1985, viu o fogo subir a encosta e correu de porta em porta gritando “Foge! Foge!”. Salvou a vila inteira. No dia seguinte, encontraram-na sentada na praça, com os cabelos queimados, cantando um ponto de umbanda. Deram-lhe uma casa. Ela aceitou. Mas nunca fechou a janela.
A quinta era de Clara, a costureira. Costurava enxovais de noiva com retalhos de vestidos de baile. “Todo mundo merece um dia de princesa”, dizia. Quando a fábrica fechou e as mulheres ficaram sem trabalho, Clara abriu a porta: “Tragam linha, agulha e raiva.” Juntas, criaram a Cooperativa das Retalhadas. Hoje, vendem para Paris. Clara ainda usa o mesmo dedal de prata que herdou da avó escrava.
Na sexta janela, Ana, a menino. Cortava o cabelo curto, vestia calça do irmão, trabalhava na roça. Quando o pai morreu, assumiu a enxada. “Terra não pergunta se é homem ou mulher”, dizia. Plantou feijão, criou porcos, pagou a faculdade da irmã caçula. Anos depois, a irmã voltou médica. Ana chorou escondido no banheiro. “Valeu cada calo”, sussurrou.
A sétima janela era de Nina, a menina. Tinha 12 anos e um caderno onde escrevia tudo. Anotava as histórias das seis. “Um dia vou fazer um livro”, prometia. As mulheres riam. “Faz logo, antes que a gente vire pó.” Nina escrevia à luz de vela, com lápis mordido. Quando terminou, levou o caderno à prefeitura. O prefeito riu. “Menina, isso é coisa de louco.” Nina não se abalou. Mandou para uma editora em São Paulo. Três meses depois, chegou um envelope. Dentro, um contrato. E uma carta: “Seu livro será publicado. Assine aqui.”
Na noite do lançamento, a vila inteira se reuniu na praça. As sete mulheres sentaram na primeira fila. Nina subiu ao palco com o livro nas mãos trêmulas. Abriu na dedicatória:
Para as sete janelas que me ensinaram que história não é o que contam. É o que a gente vive.
Zefinha chorou. Lúcia aplaudiu. Maria sorriu. Joana dançou. Clara ajeitou o vestido. Ana bateu forte no peito. Nina olhou para elas e disse:
“Este livro não é meu. É nosso.”
E assim, na vila de São Bento do Sapucaí, onde a neblina ainda desce como véu de noiva, sete mulheres costuraram não só retalhos, mas o tempo. E o tempo, pela primeira vez, parou para ouvi-las.