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O silêncio é de prata!

A DANÇA DOS PROVÉRBIOS

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Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

Ele era conhecido como “o doutor” pelos empregados. César Augusto não era médico e nem advogado, mas tinha a atitude e a pose de um Dalai Lama, embora sem a proverbial discrição ou humildade dos monges tibetanos.

Era chefe de departamento e trabalhava sempre de terno e gravata, indumentária impecável que nunca repetia de um dia para o outro.

Quando falava para orientar ou admoestar algum subordinado, no fim da peroração sempre citava um ditado popular que ficava como lição profissional e, ao mesmo tempo, de vida:

-Então José, quem não tem colírio, usa óculos escuros!

-Sim, doutor, entendi!

-João, entenda, em rio que tem piranha, macaco bebe água de canudo.

-Sem dúvida, doutor, muito obrigado!

-E, Gilvan, não esqueça jamais que camarão que dorme, a água leva!

-Perfeitamente, doutor, isso não se repetirá!

-Osmar, não desanime, água mole em pedra dura, tanto bate até que fura!

-Anotado, doutor!

-Genésio, sempre tenha em mente: cada macaco no seu galho!

-Desculpe, doutor, vou me lembrar disso na próxima vez.

Alguns o achavam pedante e marrento, mas outros gostavam de se sentir bafejados pela sabedoria professoral do doutor.

Mesmo quem não apreciava o seu jeito pedagógico-proverbial, não conseguia contrapor argumentos válidos ao receituário aplicado para cada caso que ele analisava.

O doutor César raramente participava das confraternizações e dos churrascos com os seus pares da chefia de outros departamentos, pois sabia que muitos deles, “por despeito e inveja”, ironizavam o seu palavreado metafórico e a sua índole filosófica-professoral.

Todavia, naquele ano, o CEO da empresa decidiu homenagear o seu singular subordinado com um almoço para comemorar o aniversário do doutor. Nesse caso, ele não podia recusar a honraria e a sua presença no convescote, pois como ele mesmo dizia, “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.

No almoço, O CEO finalizou o breve discurso em homenagem ao aniversariante com o famoso preceito “a César o que é de César!”.

O doutor nunca entendeu por que aquilo causou nele um choque disruptivo que abalou o seu senso analítico e a sua proeminente cognição, mas o fato é que, a partir daquele momento, ele nunca mais foi o mesmo.

Logo depois, quando um colega o elogiou por uma qualidade da qual ele muito se orgulhava, tentou replicar com a costumeira habilidade proverbial:

-Meu caro César Augusto, todos os funcionários dizem que você é muito justo!

-Sempre tento ser justo como Moises!

-Moisés? Não seria como Salomão?

Perplexo com o equívoco, o doutor emudeceu.

-Ora, Moisés também era justo… tentou minimizar outro colega.

Todavia, o doutor não se consolou com a simpática tentativa de ajuda.

A questão não era aquela, e sim a necessidade de ornar a expertise, de falar as coisas do jeito certo e preciso.

Desde então, uma sucessão de tropeços ao esgrimir provérbios e preceitos mutilaram ainda mais a autoconfiança do doutor:

-Aderbal, você tem que entender que de grão em grão a galinha enche o saco!

-Maciel, pense que alguém que tudo quer, tudo pede!

-Oliveira, não precisa se preocupar, cão que late, não saliva!

-Vitorino, é sabido que quem muito fala, dá bom dia a camelo!

Atônitos, os subordinados comentavam à boca pequena:

-O doutor está ficando gagá!

Ao ouvir de pé de ouvido o zum-zum não lisonjeiro, alterado e em desespero de causa, o doutor resolveu convocar uma reunião.

Tenso e irritado, tentou concluir o sabão coletivo em grande estilo:

-Então, estão todos avisados: quem cochicha o rabo esguicha!

Até ao responder ao agradecimento emocionado de um pedinte no semáforo, o doutor ficou com a sensação de que não tinha se saído bem:

-Quem dá aos pobres e empresta, adeus!

No terceiro dia do apagão cognitivo, deprimido – mas decidido – o doutor fez um pedido inusitado à esposa:

-Cleonice, liga para o CEO e diz que estou com dengue hemorrágica!

-O quê? Você não vai trabalhar e quer que eu aplique essa falácia no seu chefe? Afinal, o que há com você, César?

-Nada, nada… mas é preciso que eu não fale com ninguém por um tempo, o silêncio é de prata!

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