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Aparências

A era dos doentes felizes

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Autor/Imagem:
Mércia Souza - Foto Francisco Filipino

A internet nos trouxe algo maravilhoso, o acesso fácil ao mundo.

Recordo com carinho as histórias do meu avô contando sobre as cartas, que demoravam até três meses para chegar ao endereço de uma tia, cunhada dele, espanhola.

Uma simples carta, três meses.

Hoje, fazemos compras internacionais e, na maioria das vezes, em menos de um mês o produto está em nossas mãos. Comidas entregues em trinta minutos, consultas médicas online em casos simples como uma virose, garganta inflamada.

Que bacana tudo isso!

Por outro lado, criamos uma geração de pessoas que dizem saber tudo, discordam dos médicos, da psicanálise e, nas redes sociais, não podem parecer fracos ou tristes. É diante disso que observo a lamentável cena de um domingo de manhã.

Gosto de ver o nascer do sol.

Desço encantada e apressada para a praia, curto aquele nascer lindo de mais uma manhã, registro o que consigo em fotos, mas a meu ver nenhuma foto transmite de fato tanta beleza, mesmo assim posto algumas, quero que as pessoas que não conseguem ou não gostam de acordar às quatro da manhã para ver o sol nascer sintam um pouquinho dessa magia. Não é apenas o nascer do sol, é o frescor da manhã, a algazarra dos pássaros, a areia úmida, a água fria, por isso caminho algum tempo.

Encontro uma pequena árvore, o sol mal nasce e fica quente, sento-me, abro meu vinho. Sim, sei que é cedo para um vinho, mas se tem outra coisa tão maravilhosa quanto o nascer do sol é vez ou outra tomar um vinho sozinha diante do mar, só com o barulho das ondas, e o único jeito é de manhã, normalmente a praia está deserta.

Pois bem, abro meu vinho, estou na metade da taça quando um casal se aproxima, em silêncio. A mulher abre uma canga, ele fica de pé. Alguns instantes e ele fala algo, ela retruca. Insatisfeita se levanta.

Percebo a tensão. Os dois olham em volta, sou a única na praia. O clima entre eles pesa, iniciam uma discussão que me preocupa. Eles gritam um com o outro, se ofendem e entendo, no meio da discussão, que eles saíram de casa para brigar longe das pessoas.

Bom, que legal, ninguém precisa assistir.

A discussão só aumenta, parece que não vai ter fim. Ela olha no relógio e diz:

— Hora de acabar.

Ela pega a garrafa de água, lava o rosto, seca e pega o celular. Enquanto isso, ele dá um mergulho, volta molhado e pega o celular.

Ele é o primeiro a gravar um pequeno vídeo mostrando a praia, o amanhecer, o banho de mar, e a esposa linda por quem ele é apaixonado, inclusive com um beijo apaixonado para o vídeo. Ela faz um vídeo mais curto, mostrando a si e a praia ao fundo e o momento feliz ao lado do marido.

Logo após, os dois recolhem as coisas e seguem em silêncio. Fico com inúmeras questões.

1- Não foram discutir longe das pessoas por respeito, mas pela obrigação de ter que parecer um casal perfeito.

2-Escolheram um lugar lindo que deveria ser para tranquilidade. Será que isso não estraga os momentos diários em uma praia? Será que não registram em si como um lugar que gera tensão?

3-Por que essa necessidade que temos em demonstrar nas redes sociais que vivemos felizes vinte quatro horas por dia, que somos perfeitos?

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Mércia Souza, mãe, avó, artesã crocheteira e escritora, descobriu sua paixão pela arte ainda na infância, possui três livros publicados, dois romances e um de crônicas e participação em várias antologias. Fundadora do projeto “Mulheres com voz” sonha com um mundo de igualdade.
Atualmente reside em Cachoeiro de Itapemirim-ES.

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