Os irmãos (Epílogo)
A esperança final
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O presidente abriu a sessão e, com voz grave, após algumas formalidades de estilo, leu o veredito: deliberando o tribunal, por maioria de votos, negou-se provimento ao recurso e manteve-se a validade do testamento do finado Coronel Francisco Antunes.
Erasmo permanecia como fora declarado: filho natural e herdeiro de metade da fortuna. Pela voz extinta do Coronel, os escravos do Morro Verde e das outras fazendas continuavam livres, com suas terras asseguradas.
Nos dias que se seguiram, vieram da ala conservadora apupos de ultraje. Da ala abolicionista, ergueram-se camélias, incentivou-se a causa.
Erasmo sentia o corpo leve e pesado ao mesmo tempo. Sabia-se liberto em lei, herdeiro em escritura, mas pressentia o peso de carregar nos ombros a esperança de muitos e o ódio de um só, seu irmão.
Eurico mascou a derrota como fel. Não esperou o fim da polêmica: retirou-se da Corte e não deu mais declarações.
O Barreiro se incendiou de tochas e cantos. Famílias ajoelharam-se na terra, beijando o pó como quem beija a face da mãe. Mulheres negras erguiam crianças ao alto, dizendo: “Ficarão sempre livres como as estrelas”.
Erasmo retornou às terras que lhe cabiam, ampliou a extensão cultivada pelos forros, e caminhava entre eles como um igual, abraçado a Sabina, já velha, que era como um monumento a lembrar a vontade de vitória sobre séculos de dor. O povo era-lhe grato, mas ele não se sentia dono de nada, apenas depositário de uma graça que lhe caíra das mãos de um pai contraditório.
Poucas semanas depois, em 13 de maio, a Princesa Isabel, regente do Império, assinava a Lei Áurea. Os jornais noticiaram com letras de triunfo: “Escravidão abolida em todo o Brasil”. O testamento de Francisco Antunes, que já abrira as portas daquelas terras, agora parecia prenúncio de uma libertação maior.
Nas terras que couberam ao irmão liberto, tudo era viço e riqueza. O trabalho contínuo e a modernização das práticas da lavoura e da pecuária, a superação da monocultura do café, trouxeram bastante resultado. A mão de obra de imigrantes, em cooperação com os ex-escravizados, dera visíveis resultados.
Já nas outras áreas que couberam ao revoltado Eurico, o abandono era patente. Sempre prenhe de ódio e ressentimento, inimigo do trabalho, o outro herdeiro deixara seu quinhão à míngua. Limites derribados, terra arruinada, não tardou para que outros tomassem posse. A vida do filho legítimo fora a continuidade do esbanjamento da pouca fortuna que conservara, até que, tendo como único herdeiro seu meio-irmão, acabou morrendo. Tudo retornara, ironicamente, às mãos de Erasmo.
Com sua morte, em 1929, o Barreiro permaneceu como herança coletiva, guardado pelos filhos e netos que mantinham a palavra do Coronel no coração: terra indivisível, trabalho livre, fraternidade.
Mas o país não se fez fraterno. A República Velha, que Erasmo vira nascer, desabou em 1930, e Vargas, com sua retórica trabalhista, prometia justiça ao povo, sem nunca tocar no alicerce de pedra da grande propriedade rural.
O nome dos Antunes parecia diluir-se. Eurico já não existia, e sua memória não passava de lembrança amarga em velhos discursos mofados. Mas o exemplo de Erasmo, transmitido de pai para filho, seguiu vivo. A cada 13 de maio, no terreiro do Barreiro, a comunidade acendia fogueiras e entoava cânticos que misturavam ladainhas católicas, batidas de tambor e hinos aprendidos com missionários protestantes. Era um ritual de memória: a lembrança de que a liberdade fora escrita com tinta e sangue.
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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).