A favela que grita a plenos pulmões e ninguém escuta

Prezada cidade,

Desculpa interromper seu café com pão de fermentação natural. É que eu gritei. Mais uma vez. E como sempre, você não ouviu.

Gritei na fumaça do barraco que queimou de novo. Na criança com bronquite crônica que acha que ar puro é lenda. Gritei no som do tiro que virou despertador e no silêncio que veio depois, quando ninguém perguntou quem morreu.

Talvez você não me ouça porque o meu grito não combina com a trilha sonora dos seus podcasts. Porque minha rua sem CEP não aparece no seu aplicativo de entrega. Porque meu protesto atrasa seu trânsito. Porque minha existência não foi prevista no seu plano diretor.

Nasci como erro foi o que você sempre me disse. “Invasão”, “aglomerado”, “zona de risco”. Mas eu prefiro me chamar de resistência. De arquitetura do possível. De urbanismo da sobrevivência.

Você me vê como problema. Eu sou a solução que você não quis enxergar.

Construí casa com tijolo do que sobrou das suas obras. Criei cultura onde sua arte nunca chegou. Fiz samba sem partitura, funk sem patrocínio e poesia sem diploma. Cresci onde disseram que nada cresceria.

Você diz que quer me “integrar”. Mas integração sem escuta é só maquiagem. Asfalto em cima da lama, sem drenagem, dá enchente. Asfalto em cima da dor, sem memória, dá revolta.

Eu sou a Favela do Moinho, da Maré, do Alemão, da Cidade de Deus mas também sou a da esquina que você nem sabe o nome. Sou onde a cidade sangra, mas também onde pulsa. Sou o grito que você abafa com seus fones de ouvido e políticas públicas escritas em ar-condicionado.

E por mais que você tente me silenciar, eu continuo aqui. Gritando.

Porque quando a cidade apaga, a favela acende. Acende fogueira, ideia, panela, sorriso, luta.

Então, da próxima vez que você me ouvir protestar, não pense que é barulho. É só o som da vida tentando existir.

Atenciosamente,
A favela. Aquela que grita. Aquela que vive.