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Situação intolerável

A Hipocrisia Silenciosa da Sociedade

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Autor/Imagem:
Emanuelle Nascimento - Foto Francisco Filipino

Há contradições sociais tão profundas que quase passam despercebidas de tão naturalizadas. Entre elas, uma das mais cruéis: a sociedade que condena mulheres por escolherem não ter filhos é a mesma que tolera com desconfortável tranquilidade homens que, mesmo tendo filhos, escolhem não ser pais. E nós crescemos dentro dessa lógica distorcida, como se fosse parte da paisagem.

Aprendemos cedo que sobre o corpo feminino pesa uma dívida moral. Se escolhemos não ser mães, somos acusadas de egoísmo, frieza, imaturidade. Se escolhemos ser mães, somos analisadas, julgadas, vigiadas. Se escolhemos ser qualquer coisa que não corresponda ao roteiro pré-estabelecido, somos questionadas como se devêssemos explicações públicas sobre nossas escolhas privadas.

Enquanto isso, a ausência masculina é tratada como detalhe. Um acaso. Uma falha lamentável, porém compreensível. Um “foi o que deu”, dito com calma e quase resignação.

Aprendemos, na prática, que o abandono paterno não choca; ele se repete. E se repete porque é autorizado. Porque é perdoado antes mesmo de ser reconhecido. Porque culturalmente ainda se espera que nós carreguemos sozinhas o que o patriarcado insistiu em chamar de “instinto”.

Quando pensamos como coletivo, percebemos a violência embutida nisso: a maternidade é tratada como destino; a paternidade, como opção.

E isso diz muito sobre a forma como construímos o valor social de cada gênero. A mulher é responsabilizada pelo que não escolhe; o homem é poupado do que abandona. E no meio dessa lógica injusta, quem sofre não é apenas o indivíduo, mas toda a comunidade que precisa suportar o peso de uma cultura desigual.

Nós precisamos falar sobre isso com rigor, sem suavidades. Precisamos mostrar que autonomia não é crime. Que não querer ser mãe não fere ninguém. Que a escolha feminina não ameaça a ordem do mundo. O que ameaça e sempre ameaçou é a irresponsabilidade legitimada, mascarada de “natureza masculina”.

Quando observamos essa estrutura com o olhar etnográfico, percebemos que o problema nunca foi a decisão da mulher. O problema sempre foi o sistema que nos socializou para julgar mulheres e desculpar homens. Somos produto de um imaginário que ainda romantiza a maternidade e banaliza a paternidade.

Mas nós estamos mudando. Estamos questionando. Estamos rasgando esse contrato social injusto. E, ao fazer isso, mostramos a verdade que muitos evitam encarar: a liberdade de uma mulher é um dos maiores testes de violência simbólica que a sociedade ainda insiste em aplicar.

No fim, é simples e por isso tão revolucionário: nenhuma mulher deve ser punida por escolher não ter filhos. E nenhum homem deve ser poupado por escolher não ser pai.

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