Indigestão
A jaca
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Em uma passagem de um romance de Jorge Amado, uma mulher convence o amante a matar um grande amigo. Ele chega à casa do brother decidido a assassiná-lo e se suicidar em seguida, e o encontra traçando uma jaca.
– Oi, chega mais, irmão, me ajuda com essa maravilha – diz a quase vítima.
O quase homicida/suicida titubeia, mas cede, senta junto ao companheiro, e em pouco tempo o perfume e o mel da fruta, que lambuza os dois, afastam quaisquer impulsos de morte.
Vejo nesse episódio um arquétipo da brasilianice. Grandes gestos, por aqui, parecem meio ridículos e pegajosos, como se embebidos no sumo da fruta. Dores de amor, que em outras plagas desencadeiam suicídios, nas nossas passam rapidinho, em meio a novas paixões efêmeras e trepadas de responsa. Não dá pra matar ou sofrer profundamente quando se tem como uma das metáforas da nacionalidade uma jaca tropical.
Agora, o conto.
Lia, de quarentena em Porto Alegre, havia terminado por áudio do whatsapp uma relação de oito meses com Juca, quarentenado em São Paulo. Eles haviam vivido um amor maduro, difícil não só pela distância, mas principalmente por serem muito diferentes entre si.
Juca – ele detestava seu pomposo nome duplo, João Leopoldo – era um homem de sentimentos simples, por vezes superficiais. Isso o tornava incapaz de guardar ódio ou rancor por muito tempo; em contrapartida, levava-o a não perceber bem emoções complexas que se manifestavam debaixo de seu nariz. Com as mulheres, então, era uma calamidade. Se ele fosse ao cinema com uma moça, e ela levasse a mão dele ao seio e murmurasse “Segura aqui pra mim”, ele seria capaz de perguntar “Por quê? Você vai aonde?”
Se, ao falar, Juca era simplificador e por vezes brusco, quando escrevia era outra coisa. Talvez porque isso o obrigasse a pensar duas vezes, a reler, a corrigir, a editar – não por acaso, trabalhara a vida inteira no mercado editorial e, depois de aposentado, escrevia contos. Lia, por sua vez, extremamente sensível, mil vezes mais que Juca, era, acima de tudo, um bicho visual. A trajetória de amor dos dois refletia essa defasagem. Enquanto Juca havia escrito um livro no qual ela era a protagonista, Lia havia feito tatuagens referentes aos dois e preparado amorosamente um lindo enxoval para ele e para ela, com robes de chambre, perfumes e cremes para as partes altas e baixas, tudo olhável, cheirável, lambível ou mordível.
Em relação ao término por mensagem de voz, os dois estavam igualmente frustrados, mas por motivos opostos. Juca escreveu num e-mail, enviado após vários dias de silêncio total:
“Lia, estou velho. De bom, o senso de humor e a capacidade de me comunicar por escrito. E foi isso que você cortou pela raiz. O nome técnico é castração, dói na hora (muito) e depois a cada dia. O resultado é o empobrecimento amplo, geral e irrestrito de minha vida – e, ouso dizer, também da sua”.
Para a moça por sua vez, as palavras pronunciadas não bastavam, e muito menos as palavras escritas, tão amadas por Juca (embora ela também escrevesse muito bem). Provavelmente sem ter plena consciência disso, o que Lia desejava era transformar a ruptura em algo visualmente inesquecível. Então, quebrando o silêncio que ela própria havia imposto, respondeu no ato, sugeriu ligar às 21h daquela noite e pediu licença pra usar o telefonema com vídeo. O imbecil do Juca concordou e ainda escreveu: “Tudo bem, mas estou feio, não corto cabelo e barba há uns 15 dias”. No fundo, o imbecil esperava uma reconciliação, ou no mínimo os primeiros passos para.
Lia preparou tudo cuidadosamente. Iluminação forte, perfeita; um lindo vestido azul e branco, que Juca não conhecia, indício sutil de que ela havia ido em frente; e ligou na hora marcada.
Ao ver o rosto amado, Juca, o parvo, pediu um sorriso. Recebeu um esgar.
E Lia começou, dentro de seu clássico estilo espiral de discurso, que fornecia informações aos pedacinhos, circundava-as com o emocional vivido, afastava-se e depois retornava com outro punhado de hard data. Ela levou uns 8 minutos para dizer que: eles haviam se afastado devido à brusquidão dele, preferira permanecer em silêncio enquanto estava cheia de rancor e ressentimento, e que essas emoções poderiam feri-lo mas feriam também, e principalmente, a ela.
Rancor? Ressentimento? Juca não sentira nada semelhante, só decepção e tristeza pelo fim do romance (que ele continuava a imaginar recuperável). Foi então que ele ofereceu a talhada de jaca, cometendo ao mesmo tempo o imperdoável crime de interrompê-la.
– Desculpe, só quero saber se, quando você acabar, vou poder falar, ou isso é um monólogo?
Gaúchos não se dão bem com jacas tropicais. Atingida nos cornos pelo monólogo-fruta sumarenta, Lia gaguejou:
– Mo-monólogo? A-acho que tudo já foi dito antes, só queria…
Só quando ouviu o “tudo já foi dito antes” que Juca percebeu que Lia não desejava conversar, muito menos se reconciliar, e sim criar um grand finale.
– Então é monólogo mesmo – cortou Juca, lambuzado com sumo de jaca. – Nesse caso, só me resta dizer “Hoy vas entrar en mi pasado”. Era um verso do tango “Los mareados”, um verso que os dois consideravam terrível, por expressar uma ruptura definitiva com a vida presente, em perpétua mudança e construção.
– Você faz questão de dar a última palavra, certo? – indagou Lia, refazendo-se do atentado a jaca. Foi a primeira pista que Juca teve de que o falar por último estava na pauta.
– Nesse caso, nada mais resta a dizer – acrescentou a moça.
– Só quatro versos – contrapôs Juca, e citou a estrofe final de “Trocando em miúdos”, de Chico Buarque.
“Eu bato o portão sem fazer alarde/Eu levo a carteira de identidade/
Uma saideira, muita saudade/E a leve impressão de que já vou tarde.”
E assim acabou uma história de amor durante a quarentena. Contrariando João Bosco, em “Latin lover”, esse amor não morreu de tédio, “sem revólver, sem ciúmes, sem remédio”. Morreu de jaca, o que pode ser indigesto, mas tem o seu sabor.