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Por acaso

A Lâmpada e o Sapatinho

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Entrei naquela pequena loja de ferragens, materiais de construção, ferramentas e outras variedades de casa apenas para comprar uma lâmpada. Prosaica lâmpada de 90 watts para instalar no bocal perto da escada que, escura ontem à noite, quase me fizera tropeçar. Deu raiva. Vasculhei em casa, não achara nenhuma. Fui tomado por uma preguiça imensa, vontade de não ir na rua, de tirar outra lâmpada de um ponto da casa onde não precisasse tanto de luz e colocar ali, justo onde eu passo toda hora e uma queda de tal altura pode ser fatal. Pensando na possibilidade terrível, finalmente venci a inação e, corajosamente, saí de casa em demanda da bendita lâmpada.

Mal observava as coisas no caminho, andava maquinalmente, absorto em pensamentos, injuriado porque o filamento rompido me havia feito compartilhar forçadamente o espaço público com aqueles transeuntes anônimos e atrevidamente desconhecidos. Mas fui, corajosamente, até chegar ao estabelecimento no qual, certamente, havia dezenas, centenas ou mais lâmpadas. Era apenas o caso de comprar uma e voltar rapidamente para o sacrossanto recôndito do lar.

A loja, de um espanhol, era antiga e possuía apenas uma porta, alta, rematada em arco. E tinha esse cheiro peculiar das lojas antigas, não importa o que vendam, parecendo madeira de balcão, misturada com poeira e cantos bagunçados. O espaço para os fregueses, em frente a esse balcão, era apertado, e cheio de produtos empilhados em ambos os lados. Assim, ainda que, à minha frente, houvesse apenas uma outra freguesa, tive de esperar que ela terminasse de ser atendida para que eu chegasse próximo ao empregado e fizesse o meu pedido.

Entre irritado e impaciente, acabei, sem querer, testemunhando o diálogo daquela freguesa com o vendedor. Ela, quase suplicante, dizia:

— Está aqui em algum lugar… Eu sei que está.

— Mostre, por favor. Eu preciso, para resolver o problema da senhora.

— Mas eu não acho. Não é possível, eu não tirei daqui.

Neste momento, percebi o drama que se desenrolava. A mulher, de vestido humilde e sapatos gastos, comprara ali, ou dizia haver comprado, um varal portátil. Mas notara algum problema com a peça, ou desistira do produto, e agora procurava trocá-lo, ou devolvê-lo. O vendedor exigia a notinha da compra.

— Tudo bem, a senhora pode procurar — acalmou-a o empregado da loja, ao que a freguesa respondeu:

— O senhor não poderia apenas trocar para mim, ou me dar o crédito na loja?

— Posso sim, mas tem que me mostrar a notinha.

O gesto da mulher mostrava certa angústia. Uma desolação, talvez sentimento de estar sozinha no mundo, à mercê daquele bárbaro balconista, lançando sobre ela um olhar angustiante de severo julgador. Absolutamente todo o seu destino dependia do pequeno pedaço de papel que havia de ser achado na bolsa enorme que a senhora carregava e, àquela hora, já repousava sobre o balcão.

As mãos da mulher penetravam no âmago escuro da bolsa, a reviravam esquadrinhando às cegas cada ponto. E nada…

— Por favor, moço, eu não posso trazer a nota depois?

— Infelizmente não é possível, madame. Eu preciso ter a nota primeiro. Sem esse documento, o patrão não autoriza eu fazer a troca.

— Pede para ele vir aqui falar comigo…

— Ele não está, senhora. Só volta mais tarde.

A cena dramática já fizera com que eu perdesse muito mais tempo do que planejara passar no modestíssimo estabelecimento. Quase pensei em ir mais à frente e comprar a lâmpada no supermercado. Era para isso que eu resolvera, justo naquele dia, prestigiar os pequenos comerciantes locais? Mas procurei continuar exercendo a santa paciência de cada dia, enquanto a mulher se virou e cruzamos os olhares. Ela, com uma ruga na testa, expressão de nervosismo, olhos semitristes, devotava-se em procurar a notinha, ou dirigir súplicas ao balconista-juiz. O empregado da loja, impassível, deixara pousar os antebraços sobre a beirada interna do balcão, como quem se refestela com uma refeição completa. E eu disfarçava a angústia crescente desviando os olhos e mirando meus pés sobre o ladrilho hidráulico antiquíssimo do chão. Que graciosos desenhos, que perfeição no encaixe, cada peça encostando na outra de maneira tal que sequer a poeira mais grossa seria capaz de se colocar entre elas.

O sol vindo da rua entrava loja adentro e eu, metido em uma bermuda curta, sentia que me queimavam as batatas da perna. O suor começava a brotar em minha testa e me afligia. E eu só fora comprar uma maldita lâmpada. Pensava em interromper aquele drama, perguntar se não podia ser atendido, mas a completa falta de vontade de interagir com os seres mais do que o estritamente necessário me fez esperar um pouco mais.

A senhora, num ultimato de frustração e desespero, virou completamente o conteúdo da bolsa sobre o balcão. Havia de achar a notinha.

Espalharam-se vários itens completamente inúteis, e eu estiquei involuntariamente o pescoço para analisá-los de onde estava.

Um pequeno desastre silencioso se espalhou ali: um lenço amarrotado, sebento, com manchas antigas, algumas moedas de dez e cinquenta centavos, um lápis sem ponta, um broche com a pedra solta, uma embalagem vazia de bala, um mini Santo Antônio de plástico, uma cartela de remédio pela metade, uns papéis amarelados e dobrados e… um pequeno sapato de bebê. Rosa. De crochê. Decorado com uma delicada fita.

A pobre mulher, absorta, passou os dedos por entre as coisas, revirando, fungando, batendo os olhos nos papéis. O varal de alumínio, encostado ali ao lado do balcão, fazia-se testemunha passiva daquilo tudo.

Nenhuma notinha. Nem rastro.

Por fim, ela começou a recolher cada coisa com a maior dignidade do mundo, como quem restaura a ordem de um altar profanado.

Guardou tudo, menos o sapatinho, que ficou por último, equilibrado no centro do balcão como um símbolo improvável.

Ela o pegou com cuidado, ajeitou com a palma da mão como se alisasse um pensamento antigo, e o recolocou na bolsa com delicadeza e silêncio.

Esse gesto me desarmou de forma inexplicável. Fiquei olhando para o balcão, já vazio, e imaginei que criança usara aquilo. Se ainda vivia. Se crescera. Ou se não existia mais. Que razão a levara a conservar aquele item numa bolsa, que devia acompanhá-la por todos os lados em que deambulasse pela cidade?

Talvez apenas uma lembrança.

Ou talvez fosse o que ela tinha de mais precioso, o que fazia sentido só para ela, e para mais ninguém.

O balconista suspirou, já meio impaciente, e decretou:

— Infelizmente, sem a notinha, não posso fazer nada agora, senhora…

A mulher assentiu com os olhos, pegou a bolsa, que parecia mais leve, apesar de tudo, e saiu da loja com o varal em sua embalagem plástica, sob o braço.

Eu, que até então só queria minha lâmpada, me dei conta de que já não lembrava o motivo exato da pressa. Uma lâmpada evitaria sempre a queda? O escuro me salvaria de uma vida monótona?

O balcão, o calor, a poeira entre os ladrilhos, tudo permanecia igual, e mesmo assim parecia outro mundo.

— Pois não? — disse o atendente, voltando-se para mim.

— A lâmpada — murmurei — de 90 watts, por favor. Mas…

(hesitei, olhando para a calçada, por onde a mulher acabara de desaparecer)

—… se tiver uma que ilumine mais do que escadas, eu agradeço.

…………………………….

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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