Rainha Himiko
A Mãe da Morte entre o mito e a história japonesa
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Poucas figuras da Antiguidade oriental caminham tão silenciosamente entre a História e o delírio quanto a Rainha Himiko. Seu nome ecoa como um sussurro ancestral nas brumas do Japão primitivo, onde o tempo ainda não havia separado o sagrado do profano, nem o poder político do poder espiritual.
Himiko teria governado o reino de Yamatai no século III, mas sua existência é mais sentida do que comprovada. Não deixou inscrições, monumentos ou túmulos indiscutíveis. Sobrevive apenas nos registros chineses do Wei Zhi, onde é descrita como uma xamã-rainha, reclusa, cercada por centenas de mulheres e protegida por guerreiros silenciosos. Um poder que não se exibia; apenas se impunha.
Na tradição lendária, Himiko não governava com exércitos, mas com rituais. Diz-se que falava com os espíritos, controlava os ciclos da vida e da morte e decidia o destino das colheitas e das guerras por meio de oráculos. Essa proximidade com o invisível fez nascer o mito mais sombrio; justamente o de que Himiko não era apenas uma mediadora dos mortos, mas sua mãe simbólica.
A alcunha de “Mãe da Morte” não se refere à crueldade, mas ao papel arcaico de quem preside a passagem. Em muitas culturas ancestrais, a morte não é inimiga da vida, mas sua guardiã. Himiko seria, assim, a deusa encarnada do limiar: aquela que acolhe o fim para permitir o recomeço.
Após sua morte, relatam as lendas, o reino mergulhou no caos. Milhares teriam morrido em disputas internas, como se a ordem do mundo tivesse sido rompida com sua ausência. Somente quando uma jovem parente assumiu o trono, repetindo os rituais da antiga rainha, a paz retornou.
Nesse ponto, o mito se adensa. E permeiam perguntas, do tipo teria Himiko sido mantida viva na imaginação coletiva como uma entidade necessária? Uma soberana cujo poder só existia enquanto o medo da desordem e da morte estivesse sob controle?
A lenda sugere que seu corpo foi enterrado com sacrifícios humanos, seus verdadeiros guardiões para a eternidade. Verdade ou invenção, o simbolismo é claro, sugerindo que a morte não a levou; apenas a ampliou.
Mais do que personagem histórica, Himiko tornou-se arquétipo. Ela representa o feminino ancestral que gera e encerra ciclos, a mãe que dá à luz e também recolhe. Não é coincidência que sua imagem atravesse séculos inspirando mangás, animes, jogos e teorias conspiratórias.
A Rainha Himiko permanece como uma sombra elegante sobre a história japonesa, retratada como uma lembrança de que o poder absoluto não precisa de tronos visíveis, apenas de crença. Onde termina a mulher, começa o mito. Onde começa a morte, talvez esteja a sua verdadeira coroa.
No fim, a Mãe da Morte não ameaça, simplesmente vigia. E enquanto o mundo insistir em esquecer seus próprios limites, Himiko continuará a reinar. Sempre silenciosa, invisível e eterna.